'Não sou criança': seis fatos que youtuber com síndrome de Down quer que todos saibam
Jovem conquista o próprio dinheiro, adora festas, namora e sonha em morar sozinha
Aos 26 anos, Cailana Eduarda Bauer não quer ser vista como criança. Conhecida nas redes sociais como Cacai, a jovem, que tem síndrome de Down, considera que ser tratada como adulta é uma forma de ser respeitada.
Ela afirma que, apesar das particularidades trazidas pela síndrome, tenta levar uma vida parecida com muitas pessoas de sua idade.
Cacai conquista o próprio dinheiro, adora festas, namora e sonha em morar sozinha. "Não gosto quando dizem que não posso fazer algo, como se eu ainda fosse uma criança", diz à BBC News Brasil.
Considerada a primeira youtuber com síndrome de Down do país, ela se tornou referência sobre o tema nas redes sociais. No Instagram, ultrapassou recentemente a marca de 100 mil seguidores. O maior sucesso dela é no TikTok, onde tem mais de 630 mil seguidores e 6,6 milhões de curtidas em seus vídeos.
As publicações de Cacai nas redes viraram trabalho e se tornaram a principal fonte de renda da família, que mora em Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador. Para administrar os seus perfis e coordenar as publicidades que tem feito, a jovem recebe ajuda dos pais, Janaina e Dalmo Lemos, e da irmã, Luiza, de 21 anos.
Janaina acredita que um dos motivos para o sucesso da filha na internet é que muitas pessoas, principalmente pais de crianças com a mesma característica, buscam influenciadores digitais que abordem a síndrome de Down. Assim como Cacai, há outros jovens com a mesma alteração genética que acumulam milhares de seguidores nas redes sociais.
No Brasil há, segundo estimativas, aproximadamente, 300 mil pessoas com a trissomia do cromossomo 21, outro nome dado à síndrome de Down — alteração genética causada pela existência de um cromossomo a mais nas células do indivíduo.
Um dos principais objetivos de Cacai na internet é ajudar a combater o preconceito. Nas redes, a jovem faz publicações que classifica como tentativas de desconstruir pensamentos que muitos têm sobre pessoas com síndrome de Down.
Em um dos vídeos recentes, ela critica quem a considera especial por ter a síndrome. Em outro, menciona as perguntas que mais escuta. "Você saber ler? Pode sair sozinha? Já beijou?", são algumas das questões. Ao fim, ela afirma: "eu posso tudo!"
A BBC News Brasil listou os seis fatos que Cacai considera que todos devem saber sobre adultos com síndrome de Down.
1 - 'Não somos eternas crianças'
Uma das situações que mais incomodam Cacai é quando as pessoas a abordam de modo infantilizado. Ela afirma que muitos pensam que indivíduos com a síndrome de Down nunca devem ser considerados adultos. "Quando alguém se aproxima de mim com voz de criança, eu respondo: 'tá falando com quem? Eu não sou criança!'", diz Cacai.
A jovem comenta que adora ir a festas, beber cerveja e dançar. "Gosto de ser adulta", resume ela, que nos últimos meses não tem frequentado eventos, em decorrência da pandemia do coronavírus.
Segundo especialistas, uma pessoa com a trissomia 21 precisa do apoio de familiares e de uma equipe multidisciplinar, com profissionais como fonoaudiólogo e psicólogo, para que possa ter um bom desenvolvimento.
Na infância, Cacai recebeu ajuda para se desenvolver, por meio de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. Segundo Janaina, o apoio recebido pela filha, durante cerca de três anos, foi fundamental para que a jovem conquistasse mais autonomia.
No futuro, um dos objetivos de Cacai é morar sozinha. Os pais, porém, temem que a filha tenha dificuldades em viver sem o apoio deles. "Caso ela se mude um dia, queremos que seja para um lugar próximo, e que ela esteja sob a nossa supervisão", diz Janaina.
O psicopedagogo Victor Martinez pontua que, apesar de causar atraso no desenvolvimento, a síndrome de Down não deve ser considerada um empecilho, principalmente quando a pessoa recebeu suporte para evoluir.
"Vai haver atraso no sistema neuropsicomotor em, praticamente, todos os casos (da síndrome de Down). Em linhas gerais, essas pessoas vão demorar mais para aprender conceitos que aqueles sem a síndrome aprendem rapidamente", diz.
"Mas com o apoio adequado, são capazes de compreender conceitos sociais e tudo o que é importante para que possam se desenvolver", diz o especialista, que acompanha pessoas com síndrome de Down no Instituto Jô Clemente (antiga Apae de São Paulo).
Em relação à possibilidade de pessoas com a trissomia 21 morarem sozinhas, Martinez cita que é importante que a família avalie a situação. "É sempre necessário analisar caso a caso e entender os apoios necessários para que a pessoa com a síndrome de Down consiga desenvolver sua vida de forma autônoma e segura", explica.
2 - 'Pergunte a mim'
Com frequência, Janaina ouve questionamentos relacionados à filha, como perguntas sobre o nome ou a idade de Cacai, mesmo quando a jovem está por perto.
"Quando estamos juntas e as pessoas me perguntam sobre a Cacai, costumo dizer que esses questionamentos devem ser feitos diretamente a ela, não a mim", relata a mãe da influenciadora digital.
Janaina conta que há algumas perguntas que são consideradas mais complexas pela filha. Por isso, a jovem pode ter dificuldades para respondê-las. "Mas antes de tudo, pergunte a ela", afirma a mãe.
Para Cacai, a situação é constrangedora, porque algumas pessoas acreditam que ela não consegue falar sobre si. "Eu sei responder sobre mim. Em algumas perguntas, a minha mãe pode ter que me ajudar, mas é sempre melhor me perguntar primeiro", diz.
3 - 'Posso Namorar'
Cacai está namorando há sete meses. "Por causa da pandemia, a gente não consegue se encontrar. Conversamos por WhatsApp ou por ligação. Tenho muitas saudades, mas nos falamos diariamente", diz a jovem.
A influenciadora digital relata que muitos acreditam que pessoas com síndrome de Down não conseguem ter um relacionamento amoroso.
"Isso não é verdade. Todo mundo sabe que namorar é bom. A gente também gosta", declara Cacai, que namora um jovem que também tem a trissomia do cromossomo 21.
Janaina comenta que nunca teve receio dos namoros da filha. "Ela já namorou outras duas vezes, mas sempre a orientei. Eu sempre tive uma visão aberta sobre o assunto, porque minha filha pode ser como outros jovens da idade dela. O problema é que muitos pais de jovens com síndrome de Down têm um pensamento antigo, acham que pessoas com deficiência não podem ter uma vida igual às outras", diz a mãe de Cacai.
"É totalmente possível que uma pessoa com síndrome de Down consiga namorar. Há casos de algumas que até formam família. Isso depende do apoio que essa pessoa recebeu desde pequena", diz Victor Martinez.
Há quem afirme que pessoas com a síndrome de Down têm a sexualidade exacerbada. O psicopedagogo, porém, rechaça essa ideia. "O que acontece é que essa pessoa (com síndrome de Down) pode ter uma imaturidade emocional, quando não recebeu apoio desde a infância para se desenvolver e entender o próprio corpo", explica.
"O indivíduo com síndrome de Down tem desejo sexual proporcional a qualquer um sem deficiência. Na puberdade, têm afloramento dos hormônios. Mas como algumas dessas pessoas podem não ter sido preparadas de forma que consigam estruturar o próprio pensamento, não sabem manifestar o desejo como a sociedade espera", diz Martinez.
"Há casos de indivíduos com síndrome de Down que se tocam em áreas públicas ou que não tiram a mão do próprio órgão sexual. Como muitas dessas pessoas (que possuem a síndrome) podem não ter aprendido a lidar com essa situação (relacionada ao próprio desejo sexual), acabam agindo assim", acrescenta o psicopedagogo.
Martinez ressalta que organicamente não há nada que comprove que uma pessoa com síndrome de Down tem mais hormônios que os outros indivíduos.
4 - 'Sei ler e escrever'
Especialistas que acompanham pessoas com síndrome de Down apontam que é possível que elas possam aprender a ler e escrever e até concluir o ensino superior, caso recebam o apoio adequado.
"É muito possível que possam aprender. O problema é que muitas pessoas com síndrome de Down não têm acesso a um ensino adequado e adaptado para que possam aprender. Tudo depende de uma construção social que possibilite que a pessoa se desenvolva", diz Victor Martinez.
"O atraso neuropsicomotor das pessoas com síndrome de Down faz com que elas aprendam a ler e escrever de forma atrasada. No entanto, isso não deve ser visto como um limitador. Com paciência e com o apoio adequado, essas pessoas conseguem se desenvolver bem", acrescenta o psicopedagogo.
Nas últimas décadas, segundo Martinez, o índice de analfabetismo diminuiu entre pessoas com a síndrome de Down, em razão de iniciativas para inclusão nas escolas — não há dados oficiais sobre o tema.
"Muitos adultos com síndrome de Down com mais de 30 anos não são alfabetizados. Mas é notável que a maior parte dos adolescentes de hoje sabe ler e escrever. Isso acontece porque a educação inclusiva teve início a partir de 1988", detalha o especialista.
Cacai conta que foi alfabetizada aos sete anos. "Muita gente acha que eu não consigo ler e escrever. Não gosto que as pessoas falem isso, porque não é verdade", diz. A jovem revela que gosta de ler história em quadrinhos.
Apesar do avanço da inclusão nas escolas, muitas pessoas com síndrome de Down ainda enfrentam problemas. Cacai estudou até o primeiro ano do ensino médio. "Ela teve dificuldades, principalmente porque estudava em um lugar muito longe. Era a escola pública com a melhor inclusão, mas não tínhamos condições de pagar um transporte escolar. As escolas próximas de casa não atendiam às nossas expectativas de um bom ensino para ela", diz Janaina.
"Ao longo desses anos, a Cacai já fez curso técnico de informática e auxiliar administrativo. Depois da pandemia, ela irá fazer a prova do Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos) para terminar o ensino médio", diz Janaina.
Um dos maiores sonhos de Cacai, após concluir o ensino médio, é cursar artes cênicas. "Quero ser atriz", diz a jovem, que já fez teatro dos 20 aos 22 anos.
5 - 'A gente consegue trabalhar'
Desde 2016, Cacai produz conteúdo para a internet. Mas foi recentemente que ela começou a faturar com a atividade, por meio da divulgação de produtos e lojas em suas redes sociais. "Hoje é o meu trabalho e posso ajudar minha família", diz a jovem.
"Em 2016, ela ganhou um cachê simbólico em um evento. No ano seguinte, recebeu para participar de um vídeo sobre bullying. Mas foi nos últimos meses deste ano, durante a pandemia, que ela passou a fazer trabalhos maiores como influenciadora", diz Janaina.
Os valores recebidos recentemente pela jovem foram fundamentais para a família. "Eu trabalhava no restaurante do meu pai, que foi fechado por causa da crise da pandemia. Então foi um período difícil", revela Janaina.
Cacai ressalta que pessoas com síndrome de Down podem conseguir um trabalho comum. Ela conta que tem conhecidos em diversas áreas. "Conheço um chef de cozinha, uma que é modelo e outros que são atendentes", diz a influenciadora.
Victor Martinez ressalta que as pessoas com a trissomia do cromossomo 21 podem ter qualquer trabalho. "Como outras pessoas, elas precisam ter as habilidades necessárias para as funções, conforme cada cargo. Conheço pessoas com a síndrome de Down que trabalham em várias áreas, como o setor administrativo de uma empresa, em farmácias ou na área de recursos humanos", comenta o psicopedagogo.
Martinez afirma que quando as pessoas nascem com síndrome de Down, os especialistas sabem que elas terão perdas nos aspectos físicos, psicológicos e cognitivos. Apesar disso, ele salienta que não há limitações que não possam ser contornadas pelos indivíduos que possuem a alteração genética.
"Ninguém pode determinar até onde elas vão se desenvolver. No passado, os médicos falavam até que limite essas pessoas chegariam. Mas esses indivíduos cresceram e foram muito mais longe. O que existe é um diagnóstico inicial de que haverá perdas, mas como o indivíduo evoluirá é algo que precisa ser construído ao longo de sua vida, conforme o apoio que recebe", diz o psicopedagogo.
6 - 'Alguns termos do cotidiano são ofensivos'
Um dos grandes problemas enfrentados pelas pessoas com síndrome de Down é o preconceito. Por isso, muitos dos vídeos feitos por Cacai tentam esclarecer pontos relacionados à trissomia do cromossomo 21.
Com frequência, a jovem aborda um tema que a incomoda: as expressões capacitistas, aquelas utilizadas para associar uma deficiência a um xingamento.
Em um vídeo, Cacai aponta algumas expressões que considera que não deveriam ser usadas como xingamento: cego, aleijado, mongol, surdo, doente e retardado. "Parem de usar essas expressões. Vamos nos desconstruir cada vez mais", diz a legenda do vídeo da jovem.
"São termos que nem sempre são usados com má-intenção. Explicamos para a Cacai que muitos não usam isso por maldade, mas as pessoas precisam entender que essas expressões são ofensivas e não faz mais sentido utilizá-las", comenta Janaina.
Os comentários ofensivos fazem parte da rotina de Cacai. Desde que começou a publicar vídeos nas redes sociais, ela recebe algumas mensagens de ódio, que costumam ser ignoradas pela jovem. "Sempre existem comentários ofensivos. No começo, fiquei bem chocada. Hoje sabemos que são pessoas extremamente carentes, que querem chamar a atenção", diz Janaina.
"Mas, graças a Deus, a maioria das mensagens que ela recebe são de carinho", acrescenta a mãe da jovem.
Apesar de ainda lidar com o preconceito, Cacai e a mãe acreditam que têm conseguido fazer com que muitas pessoas compreendam melhor a vida dos indivíduos com síndrome de Down. "Temos levado informação a muita gente. As publicações têm sido bem compartilhadas e isso é muito importante", diz Janaina.
"Gosto muito de gravar os meus vídeos, porque posso mostrar os meus valores e que sou uma pessoa capaz", relata Cacai.
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