Fãs de novelas maratonam tramas antigas e mantêm em alta gênero no streaming
'Tieta', 'Amor à Vida' e 'Império' estão entre as mais vistas no Globoplay
'Tieta', 'Amor à Vida' e 'Império' estão entre as mais vistas no Globoplay
"Sabe quando tem alguém que é ruim, mas que se finge de bom para os familiares? Gosto muito disso em novela, não sei por quê. Daí quando descobrem que essa pessoa é ruim, eu penso: 'Boa'. É um negócio que eu gosto de assistir."
É assim que o estudante Guilherme Bolognesi Ruiz Sallesse, 15, tenta explicar o seu encantamento pelo gênero, que nos anos 1970 se tornou o principal produto da indústria cultural brasileira e que, apesar de muito já ter se falado sobre seu eventual fim, continua com audiência em alta na TV aberta, na TV paga (canal Viva) e agora, também, faz sucesso no streaming.
Segundo dados do Globoplay, de janeiro até 15 de outubro deste ano, o consumo (em horas) de novelas na plataforma teve um aumento de 150% na comparação com o mesmo período de 2019. Para a empresa, grande parte deste crescimento se deve ao projeto de resgate de títulos antigos da Globo, que começou em maio –a cada duas semanas, sempre às segundas, uma produção clássica fica disponível para assinantes.
No total, já é possível assistir na plataforma 107 novelas –e, a partir desta segunda (26), entra no catálogo, "Brega & Chique", sucesso de 1987. A ideia, de acordo com o Globoplay, é "resgatar tantas obras quanto possível". "Ainda teremos outras tramas além das anunciadas, mas isso demanda tempo para mapeamento e digitalização."
E tem espectador maratonando novela na plataforma, hábito comum entre os fãs de séries. Um deles assistiu 115 capítulos de "A Favorita" (2008), em duas semanas, revela o Globoplay. O estudante Sallesse diz que não chega a tanto, embora afirme já ter assistido dez capítulos seguidos de uma mesma trama, em um só dia –no geral, ele diz ver até três na sequência.
Sua trama preferida é "Amor à Vida" (2013-2014), cujo destaque foi o dissimulado vilão Félix, personagem de Mateus Solano. O adolescente não está sozinho na sua escolha. A história de Walcyr Carrasco é uma das mais vistas na plataforma, ao lado de "Caminho das Índias" (2009), "Fera Radical (1988)", "Império" (2014-2015), "Laços de Família" (2000-2001), algumas temporadas de "Malhação", "Salve Jorge" (2012-2013), "Vale Tudo" (1988) e "Verdades Secretas" (2015) –além das tramas que estão no ar na TV e que também são bem consumidas no streaming simultaneamente.
Mas é "Tieta" (1989-1990), adaptação do romance de Jorge Amado e que foi liberada em junho, a grande campeã entre as novelas mais vistas (em consumo de horas) no Globoplay.
Guilherme Sallesse conta que já viu mais de cinco vezes "Amor à Vida". Há um motivo especial para isso. A novela escrita por Walcyr Carrasco foi a primeira que ele assistiu, ainda no modo tradicional, na TV aberta, ao lado da bisavó paterna, Anita Sepulveda Ruiz. Foi a partir dessa experiência que ele diz ter tomado gosto pelo gênero. "É muito marcante para mim por causa da minha bisa [ela faleceu em 2016]."
Em 2014, o jovem se mudou com a família para os Estados Unidos, e as produções nacionais ficaram de lado. Mas em 2016, quando uma amiga da sua mãe foi visitá-la e emprestou a senha do Globoplay, Sallesse voltou a se encantar pelo gênero. Quando está empolgado com alguma história, ele diz que não se importa muito com a plataforma física. Pode assistir pelo tablet ou até pelo celular. "Já vi até no intervalo da escola", diz.
Já o professor Fábio Sousa, 40, não se adaptou ao celular, e conecta o Globoplay à televisão. "Me dá sono, o aparelho cai, não dá certo". Noveleiro assumido, desde que assinou a plataforma de streaming da Globo, em janeiro deste ano, ele conta que já maratonou algumas tramas antigas, embora não deixe de acompanhar as inéditas –também é fã de "Amor de Mãe".
Viu "Estrela-Guia", a novela da Sandy que tem um número menor de capítulos (são 83), em três semanas. "O meu esquema é assim: a semana da novela tem seis capítulos, de segunda a sábado. Eu me programo para ver uma semana por dia", conta.
Ele mora com a família em São Luís (MA), e diz que a sua mãe reclama. "Ela fala que eu só vejo coisa velha", relata, aos risos. Mas, vez ou outra, ela também se rende às histórias antigas. "Estou vendo 'Meu Bem, Meu Mal' [1990-1991]. Outro dia foi a cena do derrame do Dom Lázaro [Lima Duarte], e ela disse: 'Volta que eu quero assistir", conta.
Embora também seja fã de séries, Sousa afirma que se sente mais identificado com as novelas. "É paixão nacional, conversa com o momento que a gente vive ou, quando é uma trama antiga, a gente lembra: 'Nossa, era assim'. Quando assisti 'Dancin' Days [1974]' com a minha mãe, ela falou: 'Era assim que eu me vestia, era assim isso, era assim aquilo'. Cada novela, de acordo com a época que foi produzida, dá uma memória afetiva, de momentos bons e ruins que vivemos."
Se antes as novelas eram um evento que reunia toda a família em torno da televisão, nas plataformas de streaming, elas se tornam cada vez mais um produto consumido de forma individual. Essa é a avaliação de Claudino Mayer, doutor em ciências da comunicação e especialista em teledramaturgia pela USP (Universidade de São Paulo).
Ele, por exemplo, conta que, embora seja fã do gênero, não se adaptou ao streaming. Prefere ver pela TV aberta. "Quando eu vejo 'A Força do Querer' [2017] na Globo, mesmo que seja uma trama reprisada e eu esteja sozinho na minha sala, eu me sinto junto a outras pessoas, eu compartilho aquela experiência com outros que estão vendo no mesmo momento."
Para driblar isso, muitos desses noveleiros que maratonam enredos antigos criam grupos nas redes sociais para dividir opiniões e compartilhar a paixão pelo gênero. Um desses já virou até podcast. É o "Critérios de Programação", um projeto independente desenvolvido pelo professor Fábio Sousa com outros três fãs de novela, de diferentes partes do país.
"De tanto a gente falar de novela pelo WhatsApp, durante a pandemia começamos a fazer chamada em grupo. Aí um falou: 'Vamos fazer um podcast? Abracei a ideia, e a gente se jogou sem entender nada, nada, nada", conta Sousa. Um episódio inédito vai ao ar, todas as quartas, e está nas principais plataformas.
O jornalista e roteirista Wesley Vieira, que pesquisa o gênero e já fez parte de grupos de fãs de novelas, avalia que a Globo fez um ótimo negócio ao disponibilizar as tramas em sua plataforma de streaming. Muitas das pessoas que ele conhece que assistem por esse meio preferem justamente essas histórias antigas. "Elas se sentem confortáveis de ver aquilo que de alguma forma conhecem", diz.
Sobre a eterna discussão se a novela vai acabar, ele diz acreditar que não e que as boas tramas sempre vão sobreviver. "Quem gosta de boas histórias, vai assistir, vai fazer maratona". Antes do Globoplay, por volta de 2008, Vieira conta que já fazia maratonas de novelas antigas que tinha em DVD, como "Vereda Tropical" (1984), e as primeiras versões de "Guerra dos Sexos" (1983-1984) e "Ti-Ti-Ti" (1985-1986).
Para Vieira, a qualidade das novelas vem caindo nos últimos anos. Por outro lado, cita algumas produções inovadoras e de boa qualidade como "Além do Tempo" (2015-2016), escrita por Elizabeth Jhin. "Amigos que não são desses grupos de fãs de novelas comentavam que a história é muito boa. E tenho um amigo que está maratonando a trama no streaming."
Na família Buono, cada noveleira tem a sua trama e a sua forma de ver preferidas. Enquanto a avó, Linda Buono, 86, não perde um capítulo de "Malhação: Viva a Diferença" [2017-2018], reprisada na TV aberta, a neta, Fabiana Buono Paschoal, 35, maratonou "A Favorita" (2008), no Globoplay. Já a dona de casa Marisa Buono Zupo, 57, filha de Linda e tia de Fabiana, é fã de novelas turcas, que assiste pelo celular.
Paschoal conta que as tramas atuais não estavam mais chamando muito a sua atenção. A última que viu foi "A Dona do Pedaço" (20019). "Mas também parei com aquela obrigação: 'Ai meu Deus, está na hora da minha novela'", diz.
Aí veio a quarentena, e ela aproveitou para assinar o Globoplay assim que viu que a história de Flora (Patrícia Pillar) e Donatela (Claudia Raia) seria lançada na plataforma. "Teve um domingo que eu passei o dia inteiro assistindo 'A Favorita', 12 horas em looping", relata. A sua mãe, a vendedora Cecília Buono Paschoal, 61, também aproveitou para ver "Totalmente Demais" (2015-2016) e "Fina Estampa" (2011) pelo aplicativo, na hora que fosse melhor para ela –e não somente nos horários que as tramas eram reprisadas na Globo.
Até dona Linda se rendeu à plataforma quando perdeu um capítulo da sua trama preferida, e a neta conectou o Globoplay à televisão para ela recuperar o episódio. "Amo 'Malhação'. Sabe porque eu amo? Porque eu acho que é instrutivo. Gosto que eles sempre terminam mostrando uma solução para um caso. [...]", diz.
Já Marisa foi apresentada às novelas turcas pela cunhada da irmã e se encantou pelas histórias, que embora sejam apresentadas como séries, tem cara de novela e número extenso de episódios. A primeira que ela viu foi "Erkenci Kus" ("Pássaro Madrugador"), que tem 51 capítulos, e é protagonizada pelo seu casal preferido de atores turcos: Can Yaman e Demet Ozdemir.
A dona de casa gostou tanto que não parou mais e abandonou as tramas brasileiras. Ela vê tudo pelo próprio celular. "Adoro a sutileza dos olhares dos casais. É tudo muito romântico, quando você pensa que vai sair um beijo, depois de uma troca profunda de olhares, sai um abraço ou no máximo um selinho", afirma, aos risos. Algumas novelas ou séries turcas podem ser vistas na Netflix.
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