Saiu no NP

'Notícias Populares' faz você se apaixonar até por 'Ninguém'

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No meio da multidão, nem sempre os transeuntes se sentem acompanhados. Na selva de pedra de São Paulo, dizia o "Notícias Populares", a solidão talvez fosse o único espaço compartilhado. Esta foi a ideia que pautou a reportagem de 9 de agosto de 1974. A data marcou o dia em que a Redação do jornal ultrapassou a marca de 50 mil cartas recebidas através da seção "Correio do Coração", destinada a arrumar namorado ou namorada para as pessoas.

O "Saiu no NP" resgata esta coluna, que chegou a alcançar recorde de participação de leitores. Também conhecida como "Cantinho da Correspondência", a seção foi dirigida pela jornalista Anissa Gebara Portão, ou simplesmente Isabel.

Se hoje sites e aplicativos de namoro fazem parte do cotidiano de jovens e adultos ávidos por arrumarem algum tipo de romance, a seção de namoro do 'NP', criada há meio século, assemelha-se muito aos atuais cupidos eletrônicos que prometem trazer a pessoa perfeita.

Crédito: Folhapress
Em 1972, carta assinada por um grego foi enviada ao "Notícias Populares" para a seção "Correio do Coração", descrita na correspondência como "Correio Sentimental"

Os anúncios eram enfileirados um a um. Simples e diretos, os leitores expunham à sua maneira o que procuravam. Todo o volume de cartas era publicado no jornal, que, após detectar desejo de alguém em uma determinada correspondência, tinha a tarefa de encaminhar à casa da pessoa escolhida a mensagem do interessado. De acordo com a própria equipe, calcula-se que mais de meio milhão de epístolas foram trocadas entre os participantes após o primeiro contato da seção.

Em meio a uma época em que pouco se falava de interatividade, o "Notícias Populares" abriu espaço para os leitores de todo o país. Com o passar do tempo, a ideia foi tão bem-sucedida que atingiu apaixonados da Venezuela, de Angola, da Arábia Saudita e até do Iraque.

As regras eram simples. A coluna era publicada diariamente e ocupava local de destaque no periódico, que publicava o conteúdo na segunda página. O interessado mandava uma carta à Redação, contendo um pseudônimo, a descrição e o tipo de alvo desejado.

Pelas autodescrições dos participantes, pode-se supor que o trabalho do cupido não seria tão difícil. Confira um exemplo: "Julieta Solitária - 'branca, olhos azuis, cabelos ruivos, solteira, estudante, prendas domésticas, de boa formação moral, inteligente, compreensiva, 1,65 m, 56 kg, 24 anos. Correspondência com solteiro, educado, honesto, trabalhador, sem vícios, para fins de amizades ou algo mais'".

Os pseudônimos eram os mais variados possíveis. Muitos deles faziam menção à solidão, alguns optavam pela dramaticidade, outros já eram mais bem-humorados. Qualquer um poderia se apaixonar pelo "sonhando com você", "só solidão", "nissei sem sorte", "fã dos escurinhos", "formigão" ou "conhecedor das matas de Angola". Há também quem poderia se apaixonar por "ninguém".

Ninguém - "morena clara, olhos e cabelos castanhos, solteira, educada, sincera, meiga, carinhosa, simples, de ótima formação moral, simpática, 26 anos, 1,50 m, 51 kg. Correspondência com solteiro ou viúvo, honesto, trabalhador, sincero, carinhoso, para compromisso. Exige-se foto na 1ª carta".

Embora com receio de ser motivo de chacota, centenas de milhares de leitores não resistiram e utilizaram o expediente do "NP".

"Há um denominador comum nas cartas enviadas ao 'Correio do Coração'. Raros são aqueles que não se referem ao problema da solidão. Não importa os milhões de habitantes que São Paulo tenha", descreveu o diário em 9 de agosto de 1974. Outro destaque é o grau de interação entre o público com o "Notícias Populares" numa época em que as maneiras de se comunicar eram bem mais limitadas.

A reportagem chamava a atenção para o fato de que muitos encaminhavam suas cartas só para desabafar. "Centenas de pessoas pretendem apenas ter com quem dialogar, contar seus problemas." No "Correio do Coração", publicou o 'NP' no mesmo dia, há "o propósito de minorar essa ideia de solidão no espírito dos que buscam afeto através das correspondências".

Como resultado, o jornal chegou a receber cartas de agradecimento dos leitores que tinham conseguido um par. Na época, muitos constituíram famílias graças ao "NP". Fotos de casais recém-formados ou convites de casamento enviado à equipe de Redação eram constantes. É o caso da reportagem especial do dia 16 de agosto de 1981. A data celebrava o recebimento da carta de número 100 mil. Já casada há sete anos e mãe de um menino, uma leitora declarou que "graças a Deus e a vocês estamos juntos até hoje. [...] Então, Isabel, quero que muitos tenham a mesma sorte que eu, que, através do cantinho, encontrem a pessoa certa para caminhar lado a lado na árdua estrada da vida, porque casar é fácil", decretou dona Angelina.

Crédito: Folhapress
Em 6 de agosto de 1981, mais um conselho de Isabel na coluna "Correio do Coração", no "Notícias Populares", endereçado a "Coração Solitário"

Com o tempo, a coluna conquistou também a Redação, que era responsável não só pela produção editorial como também pela logística de recebimento e entrega das cartas. Antes de ir até seu gabinete, todos os dias, Jean Mellé, um dos fundadores do "Notícias Populares", ia até a mesa da redatora afim de perguntar quantas mensagens haviam recebido até então. No começo da década de 1980, a coluna já recebia cerca de 350 cartas por dia. Entre os anos 1960 até 1983, quando ela foi encerrada, foram mais de 100 mil participações. De todas as editorias do jornal, o "Cantinho" foi a que batia recordes de interação com o público.

Para o desespero dos apaixonados, o "Correio do Coração" foi extinto no dia 10 de abril de 1983. A notícia do término do namoro veio repentinamente.

A "Coluna do Coração está incorporada, a partir de hoje, aos 'Classificados Populares', seção 'mensagens', e, portanto, sujeito a sua regulamentação", publicou o jornal. Era o fim de um relacionamento que durou mais de 20 anos.

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