Chico Picadinho guarda mulheres na mala
Um policial entrou no banheiro e, aterrorizado, logo saiu. Acabara de ver o corpo esquartejado de uma mulher, "faltando lascas como se se tratasse de peças de açougue".
O cenário não era um filme de terror. Foi o assunto que o jornal "Notícias Populares" publicou dia 5 de agosto de 1966. Os restos mortais eram da bailarina Margaret Suida, 38, a primeira vítima do "monstro da rua Aurora", chamado mais tarde de Chico Picadinho.
O "Saiu no NP" de hoje relembra dois crimes que chocaram o país nas décadas de 1960 e 1970, quando o desenhista Francisco da Costa Rocha matou e esquartejou duas mulheres em São Paulo. Ambos os crimes ficaram nacionalmente conhecidos como "o crime da mala".
A notícia que abalou a sociedade paulistana foi veiculada no "Notícias Populares" três dias após o assassinato, que citava que um "Monstro abateu bailarina e esquartejou o cadáver". Após uma bela noite de "orgia" no apartamento da rua Aurora, no centro da cidade de São Paulo, Francisco da Costa Rocha amarrou as mãos da vítima e a estrangulou com um cinto. Para se livrar do corpo, decidiu então retalhar a mulher com uma faca e uma navalha.
Nua e picotada, ela foi arrastada até o lavatório, onde, aos poucos, foi parcialmente despejada pelo assassino para dentro de uma banheira, que chegou a entupir.
Com a manchete "Esquartejou a bailarina no banheiro", em 5 de agosto de 1966, o diário destacou que "o louco dormiu" com o corpo, que ficou "preso" no lavabo.
Francisco da Costa Rocha saiu do recinto e confessou tudo para seu companheiro de quarto, o amigo Caio Valadares Neto. Após a visita, Valadares, médico, decidiu denunciá-lo à polícia, que entrou no apartamento e viu a cena da mulher mergulhada na banheira e um balde ao lado com suas vísceras.
O episódio foi recebido com choque pela população, que viu o "NP" dar quase uma página inteira de cobertura para o caso.
Nos dias que seguiram, o periódico acompanhou de perto as buscas e as investigações da polícia. A reportagem apurou que o "esquartejador da rua Aurora" morava no endereço havia pouco mais de dois anos. Pacato e educado, testemunhas relatavam que ele recebia inúmeras mulheres em seu apartamento.
No dia 6, com a manchete "orgias de tóxicos na residência do monstro", o jornal descreveu o apartamento de acordo com os relatos dos detetives.
Foragido, o acusado buscou refúgio na casa da mãe, no Rio de Janeiro, onde tomou conhecimento, por meio da imprensa, de que estava sendo procurado.
No dia 8 de agosto, o "Notícias Populares" publicou que o cerco ao assassino havia acabado. A notícia tomou boa parte da edição, cujo conteúdo orbitava em torno dos primeiros depoimentos de Chico Picadinho.
Na delegacia, Francisco da Costa Rocha disse não se lembrar de detalhes do que ocorreu, mas confessou o delito. No dia seguinte, as notícias davam conta da reconstituição do crime. Resultado da repercussão do caso, inúmeros curiosos se aglutinaram em frente ao apartamento para ver o "monstro da rua Aurora".
Mesmo 144 horas –6 dias– depois do assassinato, no dia 10, o "Notícias Populares" destacava que até então ninguém havia reclamado o corpo da bailarina no necrotério. A equipe do jornal chegou a fazer uma entrevista exclusiva com o diretor do Instituto Médico Legal, que relatou que somente uma vez havia presenciado uma autópsia cujo corpo havia sido esfacelado com tanta crueldade.
Após mais um depoimento à polícia, o estripador foi apresentado a dezenas de cinegrafistas, fotógrafos e jornalistas, que tiveram a oportunidade de entrevistá-lo pela primeira vez na delegacia.
O resultado foi publicado no dia 11, oito dias depois do crime. Repórteres do "NP" também acompanharam a fala do acusado, que declarou: "Matei porque sou revoltado contra esta vida em virtude do desajuste social da minha família e porque não admitia que uma mulher tivesse vida irregular, como uma prostituta".
Julgado em 1968, o estripador foi condenado a 17 anos e seis meses de prisão. Anos depois, Chico Picadinho, nome que ganhou na cadeia, foi premiado pela Justiça por bom comportamento. A interpretação jurídica resultou em sua libertação em maio de 1974, com oito anos de detenção cumpridos.
Solto, Francisco da Costa Rocha casou-se e teve uma filha um ano depois.
Já um pouco esquecido pela imprensa, o estripador voltaria a ganhar as capas do "Notícias Populares" 10 anos depois de seu primeiro delito.
"Autor do crime da mala volta a matar em SP" preencheu a capa do dia 18 de outubro de 1976. Dessa vez, a vítima era Ângela de Souza da Silva, 34, encontrada esquartejada com um serrote dentro de um apartamento na rua Rio Branco, no centro de São Paulo.
O diário detalhou as cenas do crime. "Os pedaços de carne, depois de lavados, foram acondicionados em uma mala de viagem. (...) Todos os membros ficaram separados do corpo, o mesmo ocorrendo com a cabeça. O próprio tronco também foi cortado em pedaços."
Reincidente, Chico Picadinho ganhou maior destaque. As reportagens levantavam seu histórico familiar e relembravam detalhes do primeiro crime. Algumas, inclusive, narravam sua trajetória após sua soltura em 74 e traziam análises de psicólogos e especialistas sobre o caso.
Em 19 de outubro de 1976, quatro dias depois do assassinato, o "NP" publicou que Chico Picadinho ainda estava foragido e trouxe informações do crime, além de mais detalhes sobre a biografia da vítima e das buscas da polícia. Um dos destaques foi para "a opinião dos psicólogos sobre 'Chico Picadinho'", que levantou um panorama sobre a personalidade do esquartejador através da avaliação de especialistas.
No dia seguinte, em "O Esquartejador odeia mulheres", o jornal publicou biografia do estripador e lembrou sua infância, marcada pelo abandono da mãe e de seu suposto ódio pela figura feminina.
Depois de mais de dez dias de buscas, a polícia de São Paulo permitiu a publicação da notícia que muitos esperavam. "Já pegaram o esquartejador" foi a principal manchete do "Notícias Populares" no dia 28, em que destacou que "Chico Picadinho lia revista no quarto da pensão" quando foi surpreendido pelos investigadores.
O autor do "crime da mala" tinha sido detido na cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Dessa vez, não houve julgamento. Chico Picadinho foi declarado "incapaz" por um laudo médico pedido pelo juiz, que o sentenciou a "pena comum de prisão", fato permitido pela legislação da época. Em tese, o criminoso ficaria preso até o fim dos anos 1990.
"Francisco da Costa Rocha decepciona quem espera encontrar um assassino de olhar nervoso, quase maligno. Inteligente, domina como poucos a arte da conversa", informou o "NP" em entrevista exclusiva que fez com Chico Picadinho, publicada em 13 de setembro de 1993. Ao ser questionado sobre o que gostaria de fazer quando saísse da cadeia, o detento relatou que "queria levar uma vida normal", mas que temia o mundo fora do cárcere, onde, aliás, tornou-se leitor assíduo de escritores como Kafka e Dostoiévski. Dizendo-se arrependido, declarou seu desejo de trocar de nome a fim de se livrar do estigma de estripador.
Em 1998, Francisco da Costa Rocha cumpriu a pena máxima permitida pela lei brasileira, que é de 30 anos. Porém foi interditado judicialmente e encaminhado para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Tatuapé.
Em 2014, ele completa 46 anos sem liberdade.
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