O Homem do Sapato Branco
"Denunciar tudo o que não for correto, quebrar tabus e preconceitos e alertar o público contra os perigos do mundo atual".
Assim, em 14 de outubro de 1981, o "Notícias Populares" anunciava a chegada de seu mais novo colunista, o controvertido radialista, apresentador de televisão e ex-deputado estadual Jacinto Figueira Jr., ou "O Homem do Sapato Branco", personagem notável da TV brasileira a partir da segunda metade dos anos 60.
A nova seção, intitulada "O Homem do Sapato Branco", nasceu com a proposta de denunciar e evidenciar ainda mais a omissão do poder público diante dos percalços vividos pelas comunidades carentes da capital paulista. A coluna foi publicada diariamente até 21 de maio de 1984.
Mesmo tendo trocado de nome (de "O Homem do Sapato Branco" para "Fala o Homem do Sapato Branco") e tendo seu tamanho reduzido, a coluna no "NP" caracterizou-se pelo uso de termos como falcatruas, contos, cascatas, vigaristas, charlatões, que, segundo Figueira Júnior, "infestavam a cidade de São Paulo".
Ele fez do espaço no "NP", até como complemento da imagem que construíra na televisão, uma declaração de guerra contra "coisas erradas", como cassinos clandestinos, casas de massagens e falsos pastores.
Jacinto Figueira Júnior era, então, o pioneiro no estilo denominado "mundo cão" ou "sensacionalista" de fazer TV. Fora acusado por críticos de promover um verdadeiro circo de horrores na televisão ao apresentar em pleno regime militar eventos jamais mostrados naquelas circunstâncias: brigas entre casais e exploração de dramas pessoais de anônimos (muitas vezes armados pela produção do programa), ceias para mendigos, um transplante de córnea e uma cesariana (até então inéditos nas telinhas), além de uma pitada de excentricidade, como o caso do marido que trocou a esposa por uma mula ou o do homem-mãe, entre outras esquisitices.
Aos críticos argumentava que apenas mostrava a realidade nua e crua e que essa era uma das maneiras de as autoridades políticas tomarem conhecimento das necessidades do povo, o qual era chamado por ele de "cidadão".
Entretanto nem só de dramas alheios foi alimentada a fama do apresentador. Momentos decadentes em sua trajetória também foram explorados pela mídia e parte deles registrados pelo "Notícias Populares" ao longo dos anos.
Jacinto Figueira Júnior nasceu em 1927, na capital paulista. Trabalhou como corretor de imóveis, bancário, vendedor de anúncios para TV e foi líder do conjunto country "Júnior e seus Cowboys", entre os anos 50 e 60. A carreira na telinha começou em 1962, na TV Cultura, com o programa "Câmeras Indiscretas", que ficou no ar por um ano. Com o fim da atração, em 1963, o apresentador estreou na mesma emissora "Um Fato em Foco".
Mas a popularidade de Figueira Júnior veio em 1966, com a criação do contestável "O Homem do Sapato Branco", programa de auditório que, segundo o apresentador, teve seu título inspirado na obra de Nietzsche, um de seus autores prediletos, que em um trecho de seu livro caracteriza homens de sapato branco como pessoas puras, dignas e honradas, além de preocupadas com os problemas alheios --referência e reverência a médicos, dentistas e enfermeiros. O programa passou por Bandeirantes, Globo e, mais tarde, Record e SBT.
As divergências com a censura e os problemas com a polícia foram precoces na vida do apresentador. Em 27 de fevereiro de 1967, Jacinto Figueira Júnior, recém-eleito deputado estadual pelo MDB (agora PMDB), foi destaque de primeira página do "Notícias Populares" ao se envolver em uma briga de trânsito. Um bate-boca com a polícia, que o flagrara dirigindo na contramão, acabou se estendendo até a delegacia, apesar de o apresentador ter sido liberado depois.
Em 1º de dezembro do mesmo ano, um homem tentou esfaqueá-lo. No dia seguinte, a manchete "Sapato Branco atacado a faca" e um parágrafo da matéria no "NP" resumiam o episódio: "O deputado Jacinto Figueira Júnior, o 'Homem do Sapato Branco', quando em trabalho na rua das Palmeiras [região central de São Paulo -- onde ficava a Rádio Nacional--, em que fazia expediente], na tarde de ontem, foi ameaçado de morte, a golpe de faca. Com impressionante agilidade, evitou o agressor. Este foi agarrado por populares. Para não ser preso, acabou tentando o suicídio, fazendo um rasgo no ventre".
Aventuras à parte, por razão do conteúdo exibido em seu programa de TV na década de 60, no dia 18 de setembro de 1968, o "NP" já havia defendido o apresentador (então julgado por um amigo parlamentar) em uma nota na coluna "Caixa Alta". Intitulado "Jacinto Injustiçado", o trecho dizia: "São comuns fatos assim: investe-se contra aqueles que podem significar empecilhos. Acusam, sem fundamento os que conseguem galgar posições dentro de um critério de luta e de esforço pessoal. Estamos falando do 'Homem do Sapato Branco', injustamente atacado por um parlamentar, que denominou o seu programa na televisão de 'Mundo Cão'".
Segundo Jacinto Figueira Júnior, em entrevista para a televisão no começo dos anos 2000, o nome "Mundo Cão" foi inspirado no filme "Mondo Cane", de 1962, do diretor italiano Gualtiero Jacopetti (1919-2011), do qual o apresentador chegou a exibir o trailer em seu programa. Desde então o termo passou a ser usado como rótulo para classificar programas do mesmo gênero.
O lado garanhão de "Figueira Júnior", que foi casado por quase uma dezena de vezes, sem papel passado e sem ter tido filhos, nem sempre acabou de forma esperada e também rendeu reportagens. Em 23 de novembro de 1968, o "Notícias Populares" deu na capa a morte da jovem Vera Lúcia Florindo de Castro, de 19 anos, que no dia 12 daquele mês havia sido encontrada morta pela mãe, após enforcar-se em sua casa, em Jundiaí. De acordo com a mãe da jovem, a filha vinha nutrindo uma incontrolável paixão pelo famoso apresentador de TV. Paixão que aumentou ainda mais depois de duas visitas recentes que Figueira Júnior havia feito àquele município.
No entanto o declínio na carreira do deputado teve como provável origem uma festa de Natal promovida por ele em 15 de dezembro de 68, em frente a uma das instalações da Globo na rua das Palmeiras, região central de São Paulo. Chamado pelo apresentador de "Natal para os pobres", o evento não teve o desfecho esperado. De acordo com matéria publicada no "NP", fora prevista a distribuição de 5.000 cupons que dariam direito a alimentos e brinquedos, porém dezenas de milhares de pessoas compareceram à festa, gerando assim um grande tumulto.
Devido ao excesso de pessoas, a emissora decidiu pedir o auxílio da polícia, que optou pelo uso de bombas de efeito moral contra a multidão. O "NP" publicou também o balanço das ocorrências registradas no evento, que somava 45 crianças perdidas e outras encaminhadas para o Juizado de Menores. Cerca de 35 pessoas foram levadas ao pronto-socorro da Barra Funda, e uma mulher deu à luz em meio à confusão. O apresentador ainda teve que prestar esclarecimentos no Dops sobre o ocorrido.
Na política, a cassação do mandato como deputado estadual veio em 1969, menos de um ano após assumir o cargo. O motivo: atentado à moral e aos bons costumes. Ficou detido por cerca de dois meses. Em seguida, foi demitido pela Globo, momento em que as portas começam a se fechar para "O Homem do Sapato Branco". O apresentador ficou durante quase toda a década de 70 fora da TV. Mas continuou na rádio Nacional com o programa que o elevou no mundo televisivo.
Ele só voltaria à televisão em 1979, quando em 10 de novembro, um sábado, o "NP" anunciou a volta do "Homem do Sapato Branco" na TV: "Hoje, às 23 horas estará de volta ao vídeo, depois de dez anos de ausência, Jacinto Figueira Júnior, com o programa 'O Homem do Sapato Branco', a ser apresentado pela TV Record".
Ainda em 1979, lançou em seu programa o quadro "Pronto Socorro Sexual", cuja finalidade, segundo Figueira Júnior, era erradicar a ignorância e o atraso brasileiro relativo a temas ligados ao sexo. Em novembro do ano seguinte, o "NP" noticiou a filiação do ex-deputado ao PDS, partido do então governador Paulo Maluf: "Jacinto virou Malufista".
Em março de 1981, agora no SBT, o apresentador foi submetido às pressas a uma cirurgia cardíaca no Hospital Beneficência Portuguesa em São Paulo. Ficou entre a vida e morte.
Entre altos e baixos, depois de ter se candidatado a deputado estadual em 1982, Figueira Júnior voltou a ser protagonista de reportagem no "Notícias Populares". No final de 1984, depois de três anos no SBT, o jornal noticiou a saída do apresentador da emissora de Sílvio Santos, onde, além de ter tido um programa só seu, participava como jurado no "Show de Calouros".
Desde então, "O Homem do Sapato Branco" passou a ser um programa apenas de rádio, na Difusora. Depois de quatro anos, já como jurado do Bolinha, na Bandeirantes, Figueira Júnior parou no "NP" novamente em 28 de julho de 1988, quando tentou o cargo de vereador pelo PFL (atual DEM).
A seguir, as notícias daquele que chegou a ser a maior audiência da TV davam conta de que o polêmico "Homem do Sapato Branco" agora pedia emprego, às vezes em rede nacional.
No dia 1º de abril de 1990, o "NP" relatou o estado crítico pelo qual passava o homem que fez história na televisão brasileira ao dizer que Figueira Júnior denunciava a síndica do prédio em que residia, reclamando do aumento do condomínio onde estava morando de favor.
O último lampejo foi tido de 1991 a 1997, quando foi colocado como repórter do programa "Aqui Agora", do SBT, e tentou, pela terceira vez o cargo de deputado estadual, desta vez pelo PTB-SP. Com o fim do jornalístico, em 1997, Jacinto passou a viver somente de uma pequena aposentadoria e perdeu a esperança de voltar à televisão.
Voltou a ser alvo de matérias em 2001, quando sofreu um derrame, teve sua coordenação motora limitada e passou a sofrer problemas de audição e locomoção, e em 27 de novembro de 2005, quando, após um mês de internação no hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, devido a problemas pulmonares, morreu aos 78 anos, vítima de falência de múltiplos órgãos.
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