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Música
Descrição de chapéu The New York Times

Se o inferno é inevitável, Rina Sawayama mal pode esperar para te ver lá

Cantora de 32 anos fala sobre começo tardio na música e autonomia do corpo

Rina Sawayama Olivia Lifungula/The New York Times

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Jazmine Hughes
Nova York
The New York Times

Era uma tarde de junho de calor pegajoso na Balloon Saloon, uma loja de material para festas em Tribeca, e qualquer consumidor casual que decidisse entrar encontraria diversos modelos de piercings adesivos, fantoches para dedos que brilham no escuro, uma seleção chocante de excremento falso, e uma estrela pop rindo à toa de tudo aquilo.

Rina Sawayama, 32, perambulava pelos corredores da loja soltando gritinhos que misturavam prazer e um leve horror em doses semelhantes, e posou para fotos ao lado de manequins, antes de decidir comprar duas bandeiras: uma com a estampa do arco-íris, em homenagem ao Mês do Orgulho Gay, e uma dos Estados Unidos, já que a passagem da cantora pop nipo-britânica pelo país estava chegando ao fim.

Era a semana final de uma turnê, adiada por conta da pandemia, para divulgar seu disco de estreia, "Sawayama", lançado em 2020, e a cantora estava emocionada. "Vou sentir falta das histórias com fãs e de simplesmente poder compartilhar aquela incrível energia no espaço", ela tinha dito durante o almoço, algumas horas antes. "É quase como um relacionamento".

Os shows dela no Brooklyn Steel em maio demonstraram a profundidade desse vínculo, assim como a amplitude do paladar musical de Sawayama: em parte concerto de rock, em parte espetáculo pop, em parte sessão de terapia de grupo, diante de uma plateia formado majoritariamente por jovens, e majoritariamente por "queers". O baixo estrondava e as cabeças sacudiam, e enquanto isso Sawayama comandava o palco, cantando, praguejando e oferecendo palavras de afirmação e apreciação: "Obrigado por fazerem com que eu me sinta vista, e obrigado por fazerem com que eu me sinta escutada", ela proclamou; mais tarde, instruiu os espectadores a dizerem uns aos outros que eles todos eram muito gostosos.

Sawayama abriu caminho à força para o estrelato como uma estudante dedicada da cultura pop, construindo uma estética com base em elementos que a agradam –a diversão despudorada de Charli XCX, a vastidão discordante de gêneros de Lady Gaga— e jogando o resto no lixo. (Seu lado estudioso não se restringe à música: Ela se formou na Universidade de Cambridge, em política, psicologia e sociologia.)

"Sawayama", uma combinação inesperada de rock de batida forte e pop chiclete, chegou depois de sete anos de trabalho na criação de sua música (em boa parte financiado por ela mesma). A data de lançamento do álbum, abril de 2020, não foi nada propícia. Agora, a cantora e compositora está tentando recuperar o impulso perdido quando a pandemia obscureceu seu trabalho de estreia, e tentando aumentar o volume para 10 em seu segundo álbum, "Hold the Girl", com lançamento previsto para 16 de setembro.

"Muitas vezes, os artistas se sentem pressionados a fazer sessões de gravação e lançar canções sem parar, mas eu simplesmente não sou assim", disse Sawayama no início deste ano, durante a primeira de nossas duas longas entrevistas. "Não gosto de trabalhar duro; gosto de trabalhar intencionalmente".

Sawayama sabia que precisava de uma virada. Muita coisa havia mudado, de grandes e pequenas maneiras, desde seu primeiro álbum: O mundo se tornou mais tenso e perigoso; ela completou 30 anos e entrou em uma nova era de evolução pessoal, iniciando uma forma intensiva de terapia e embutindo as revelações que isso propiciou no DNA de "Hold the Girl". Sawayama por enquanto não pretende revelar essas descobertas, em parte por medo de influenciar a resposta dos fãs às suas novas canções.

"Acho que a tentação, para um artista hoje, é olhar online e ver o que os fãs querem", ela disse. "Mas prefiro compor algo significativo e digno do tempo das pessoas".

O resultado é um álbum expansivo que inclui ainda mais exemplos de suas inspirações musicais, com acenos a todo mundo, de Shania Twain e o grupo Abba (em "This Hell", uma canção atrevida, com um toque de country, que causa a sensação de que o pregador da igreja vacilou e fez o purgatório parecer bem divertido), a Gwen Stefani (Sawayama queria que "Catch Me in the Air" se parecesse com uma canção composta pelos Corrs para a diva pop), passando por Madonna (a introdução seca e repleta de eco para "Hold the Girl" parece inspirada por "Like a Prayer").

A combinação entre sons nostálgicos e a mais recente tecnologia permite a Sawayama experimentar com o melhor dos dois mundos sonoros. "O que eu penso sobre a era New Jack Swing, e a produção da década de 1990 em geral, é tipo...", e ela solta um grunhido. "O som era muito ambicioso, mas não acho que tecnologia daquela época tenha captado toda a amplitude".

Clarence Clarity, o principal produtor de ambos os álbuns de Sawayama, descreveu o processo de produção musical que eles desenvolveram juntos como uma série de combinações entre diversas eras e estéticas, para ver o que funciona. "Não importa realmente em que gênero estamos trabalhando, de canção para canção. O que importa é como podemos evocar aqueles sentimentos diferentes", ele disse. "É isso que é bom em trabalhar com Rina", ele acrescentou. "Ela não pensa em termos tradicionais".

Quando conversamos em fevereiro, na parte traseira de um saguão verdejante de hotel, o mundo estava enfim se descongelando, depois do duplo golpe de um inverno rigoroso e da epidemia ressurgida, e o cabelo preto e longo de Sawayama estava cortado de um jeito assimétrico que expunha a angulosidade de seu rosto. Embora no palco ela prefira figurinos dramáticos e esculturais, naquele dia ela parecia uma bailarina vestida para uma visita rápida à mercearia –calças de moletom, um "hoodie". Olhar para suas mãos era como contemplar uma caixa de joias —anéis verdes ou prateados em quase todos os dedos, unhas pintadas em tom de cromo e recobertas de ornamentos e pérolas do mesmo matiz. As novas unhas eram coisa recente, e Sawayama estava enfrentando dificuldades para se acostumar. "Não sei como Rosalía consegue", ela disse.

Perguntei a Sawayama sobre a última festa realmente boa a que ela tinha ido. A resposta dela parecia um sonho, para um civil: um conjunto de celebridades que terminam no mesmo lugar porque estão todas sintonizadas nas mesmas vibrações, ou talvez o tipo de evento que alguém imagina que acontecerá quando a pessoa enfim se tornar um sucesso. Ela foi parar em um karaokê com Harry Styles, Karamo Brown e Bobby Berk, de "Queer Eye", e mais a modelo Kiko Mizuhara e um amigo estilista.

Isso aconteceu quatro anos atrás. "Será que fui a uma festa desde então?", ela se perguntou em voz alta. É improvável. Mesmo que tenha pouco mais de 30 anos, Sawayama é uma socialite aposentada, porque satisfez seu desejo de festa ainda na adolescência. Ela nasceu em Niigata, Japão, e se mudou temporariamente para Londres com seus pais, quando era criança. Os pais logo se divorciaram, o que mudou não apenas sua base —ela acabou ficando em Londres— mas também o status social de sua família. A cantora dividiu um quarto com sua mãe até os 15 anos; a combinação entre aquela proximidade claustrofóbica, a adolescência e a barreira linguística —nenhuma delas falava muito inglês– pesava sobre ela, e ajudou na formação de uma nova identidade que Sawayama criou para si mesma: a de uma fanática por música pop.

Ela usou a música para se conectar com seus colegas de escola, criando amizades próximas que a ajudaram a sair de casa e conhecer um mundo muito mais amplo. Quando adolescente, ela ouvia álbuns na Virgin Megastore durante horas —The Killers, Bloc Party—, e depois acompanhava essas bandas de show em show. Certa vez, ela acompanhou uma banda de que gostava a Paris, sozinha, dividindo um quarto com uma fã que conheceu em um show. Aos 16 anos, ela começou a divulgar suas gravações na internet –covers de suas canções favoritas.

"Quando adolescente, eu tinha muita raiva, e sair muito era uma reação a isso", ela disse. (Quando perguntei como era "sair", Sawayama disse que as pessoas estavam basicamente fingindo ser membros do elenco da série "Skins", um programa de TV britânico semelhante a "Euphoria" que estava em cartaz naquela época). "Eu acho que tive que encontrar minha voz criativa mais tarde na vida porque eu não tinha tempo algum sozinha", ela disse. "Eu não tinha espaço algum. Não tinha privacidade. Até escrever meu diário era complicado".

Com a madura idade de 15 anos, Sawayama entrou na cozinha certa manhã e anunciou para ela aquela história de puberdade já tinha cansado. (A mãe dela não se deixou convencer tão facilmente.) Mas o vírus da festa já tinha sido eliminado do sistema de Sawayama, e bem em tempo. Ela voltou a se dedicar aos estudos e acabou por conseguir uma vaga em Cambridge. O choque cultural bateu forte: Sawayama passou a maior parte de seus anos de universidade deprimida, e sua relação com a mãe continuou a azedar até que ela fosse expulsa de casa.

Sawayama teve muitos empregos —como modelo, como vendedora em uma Apple Store (até ser demitida por posar para um anúncio da Samsung), em um caminhão de sorvete, como manicure. Em paralelo, ela desenvolveu sua música, e subia novas gravações para o SoundCloud entre os turnos de trabalho. Por fim, ela começou a ser reconhecida quando estava trabalhando como pedicure, e desistiu daquele emprego.

O empresário dela a apresentou ao produtor Clarity e eles colaboraram em "Rina", um EP lançado em 2017, com canções sobre ansiedades digitais e culturais. Sawayama fez pequenas turnês no Reino Unido e nos Estados Unidos, mas teve de continuar trabalhando em vários empregos, para se sustentar entre os shows.

"Eu assinei meu primeiro contrato com uma gravadora aos 29 anos", ela disse durante nossa segunda entrevista, em maio, no Odeon, em Tribeca. (Sawayama pediu uma porção de fritas.) "O que é bem tarde para uma artista pop. Adorei essa oportunidade de mudar a norma de uma maneira positiva. Eu chego com mais a dizer, mais experiência de vida, mais coisas sobre as quais compor".

A maturidade também tem outros benefícios: no intervalo entre os dois álbuns de Sawayama, alguns dos artistas que ela admirava se tornaram colaboradores. Ela regravou uma de suas canções, "Chosen Family", com Elton John, se uniu a Charli XCX em "Beg for You", e gravou vocais para um remix de "Free Woman", uma canção do álbum "Chromatica", de Lady Gaga.

Os contatos que ela tem agora ainda a chocam. "Todas aquelas pessoas que eu cresci ouvindo" —ela disse que também era ouvinte de artistas que agora são fãs declarados de seu trabalho, como Katy Perry e o produtor Jack Antonoff. "Nem acredito que eles saibam que eu existo", ela disse.

Mas Clarity, que observou que o novo álbum de Sawayama é muito mais pessoal do que seu disco de estreia, não se surpreende: "Ela foi feita para ser uma estrela pop", ele disse. "Nasceu para fazer isso".

Por anos, Sawayama manteve uma lista de citações ou frases interessantes em um aplicativo de anotações em seu iPhone –trechos de livros, coisas que ouviu em conversa com amigos. O título de um de seus novos singles, "This Hell", veio dessa lista. Apesar de a letra original que ela escreveu ser "este céu é melhor com você", quando ela chegou ao estúdio o verso já tinha mudado; Sawayama percebeu que o inferno poderia abranger mais de sua realidade.

Para começar, partes da pandemia foram certamente infernais. Além disso, crenças religiosas restritivas estão sendo transformadas em lei em muitos lugares do mundo. Como acontece no trabalho de Lil Nas X, outro artista que responde com irreverência "queer" à homofobia judaico-cristã, os versos da canção —"Deus nos odeia? Muito bem, então!/Aperte o cinto, partimos de manhã"— implicam que Sawayama terá companhia muita boa no caminho para a perdição.

"Eu pensei que, se existe uma crença de que estamos errados por querermos ter autonomia em nossos corpos ou identidades, então [ela usa um palavrão], vamos todos para o inferno, e vamos dar uma festa", disse Sawayama, rindo e acrescentando alguns palavrões adicionais. Ela se identifica como pansexual; o vídeo musical da canção apresenta a cantora em um casamento a três com um homem e uma mulher. "O inferno com certeza vai ser o lugar certo para mim".

No palco de Brooklyn, em maio, Sawayama mostrou aos fãs sua versão do inferno –um diabo chique dançando pelo palco em um collant vermelho-sangue. Miúda mas musculosa, ela se contorcia e serpenteava o torso com elegância sinuosa, acentuando o ritmo quando sentia o momento. A certa altura, a guitarrista se aproximou dela na frente do palco, em um solo poderoso, e se perdeu no momento como se estivesse em transe. Mas Sawayama só tinha olhos para o instrumento em si, os olhos fixos em suas cordas, dançando em resposta ao som quase como se estivesse possuída.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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