Factoides

HUMOR: Morreu menina ironia

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"O Brasil é um país onde 43% das casas não têm coleta de esgoto e um percentual muitíssimo maior não sabe reconhecer ironia nem quando ela berra, apontam dados do IBGE."

Claro, o IBGE não faz esse tipo de pesquisa e eu não estou comparando a sério as duas coisas (bom deixar tudo beeem explicadinho). Mas a compreensão da ironia não deixa de ser uma espécie de saneamento básico da vida mental --e que, assim como o saneamento básico de verdade, anda bem escassa por aqui. Volta e meia algum escritor diz que ironia é recurso fácil demais, batido etc. O problema não é esse, amigo escritor sofisticado: é fazer mesmo a mais fácil, a mais tosca, a mais ululantemente óbvia ironia e as pessoas NÃO ENTENDEREM.

E não estou falando de gente abaixo da linha da pobreza e sem coleta de esgoto em casa: são pessoas supostamente alfabetizadas, que moram decentemente, fazem três refeições por dia etc. No entanto, parecem ter vindo da fábrica sem o chip decodificador de ironia. Cheguei a pensar que o habitat natural dessa turma fosse o Facebook, mas ela está por toda parte.

Vejamos alguns episódios. Recentemente, um leitor escreveu para a Folha se dizendo indignado com esta charge do cartunista Benett, em que um garoto põe fogo num ônibus porque a mãe serviu brócolis no almoço. O alvo é a banalização da violência, o que está claro desde o título da charge; o prato poderia ser qualquer outro. Mas o leitor, professor universitário, clama aos céus contra a INJUSTIÇA feita aos pobres brócolis. Prefiro crer que a intenção do mestre foi usar a charge como simples pretexto para divulgar as qualidades da hortaliça --a única alternativa a isso é a incompreensão absoluta da piada.

O Clube dos Ironistas Incompreendidos também obteve há algum tempo a adesão de Gregorio Duvivier, que neste texto assume a persona de um leitor que critica "aquele maconheiro carioca" (o próprio Gregorio), e a de Antonio Prata, que nesta coluna anuncia ironicamente sua "guinada à direita". Aliás, achei o texto do Prata fraco, pela obviedade da caricatura --parafraseando @GuyFranco no Twitter, só faltou escrever algo como "tranco a empregada no porão e ponho o poodle de estimação para comer na mesa, olha só como eu sou DIDIREITA". Mas, mesmo com altos teores de clichê, ele conseguiu ser desentendido por cavalgaduras à direita e à esquerda.

Crédito: Auremar/Shutterstock A cada ironia incompreendida, um escritor bate com a cabeça no laptop até o laptop (ou a cabeça) virar patê
A cada ironia incompreendida, um escritor bate com a cabeça no laptop até o laptop (ou a cabeça) virar patê

Fico imaginando o que aconteceria se Jonathan Swift publicasse hoje em jornal seu panfleto "Uma Modesta Proposta", em que sugere que os moradores pobres da Irlanda vendam a carne de suas crianças como alimento para as damas e os cavalheiros da nobreza. De nada adiantaria Swift argumentar que era irlandês, estava enfurecido com a situação do país e o texto era irônico: choveriam ataques nas redes sociais, petições no Avaaz contra o canibalismo e o infanticídio etc. E posso apostar que tanto o jornal como o articulista seriam empastelados.

Acho arriscado, porém, dizer que nós (o Brasil e o mundo) tenhamos ficado mais burros --isso costuma ser mais uma modalidade do chavão "no meu tempo era melhor", que em geral se traduz por "ai, que saudade de quando aquelas calças cabiam". A burrice é a de sempre, com o passado glorioso e o futuro promissor de que falava Roberto Campos; mas os burros têm hoje mais passarelas, sobretudo virtuais, pra fazê-la desfilar. E assim relincha a humanidade.


Outro grande assunto da internet no fim de semana foi a matéria da "Veja São Paulo" sobre o Rei do Camarote, aquele mané que gasta até R$ 50 mil numa balada para, abre aspas, "chamar a atenção das gatas". Nas redes sociais, todos riram bastante da jequice do cara (ele talvez diga que ri ainda mais a cada espocar da Veuve Clicquot).

Mas não seríamos todos nós --que estamos no Twitter, no Facebook e no Instagram gritando, com fotos ou palavras, "eu sou importante! Olhem para mim!"-- seres igualmente carentes, apenas com muito menos grana para exercer essa carência? Ergo, portanto, um brinde com champanhe imaginário (mas da melhor qualidade, com fogos e tal) a todos os reis e rainhas dos camarotes virtuais. Como diria a música-tema do programa de Amaury Jr., "keep it comin', love, don't stop it now".


RUY GOIABA protesta diariamente contra a concentração de renda no país deixando de comprar Ferraris, Porsches e Lamborghinis. É ironicozinho desde os 15 anos --mesma idade em que se tornou, precocemente, tio do pavê pra chamar a atenção das gatas. Não funcionou.

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