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Estilo
Descrição de chapéu The New York Times

A moda dá adeus ao binário? Grifes apostam no fim do gênero na passarela

Tendência apareceu forte nos desfiles para a primavera de 2022

Modelos nos bastidores do desfile para a primavera 2022 em Paris Valerio Mezzanotti - 03.out.21/The New York Times

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Vanessa Friedman Guy Trebay
The New York Times

Uma das maiores tendências nos desfiles de moda para a primavera de 2022, que acabaram recentemente, não era qualquer silhueta ou cor, mas sim o fato de que muitos estilistas colocaram mulheres e homens nas passarelas vestindo aquilo que no passado teria sido definido como “moda feminina” —e não para fins de provocação, mas apenas porque é assim que as coisas são, agora.

Aqui, os dois críticos do The New York Times debatem os motivos para isso, e o que a tendência pode significar em termos de identidade de gênero, sexualidade e sociedade.

Vanessa Friedman: Guy, pensei em você nas duas últimas semanas de desfiles em Paris e Milão, porque embora eles fossem nominalmente de “moda feminina”, o termo e seu corolário —“moda masculina”, a sua área de cobertura— parecem ter cada vez menos importância.

Não estamos falando de fluidez de gênero, neutralidade de gênero ou de dualidade de gênero –todos os termos híbridos que foram empregados para descrever desfiles que combinam coleções femininas e masculinas, por exemplo, ou que destacam roupas meio genéricas e não identificáveis pelas categorias tradicionais de roupas para homens e para mulheres.

Estou falando de algo novo. Era como uma espécie de... agnosticismo de gênero. Assim, víamos roupas com jeito feminino, em cores brilhantes, tecidos macios e com muita decoração, mas quem as usava eram homens.

Na coleção de Raf Simons: um conjunto de saia e blazer para ela, um conjunto de saia e blazer para ele. Valentino: tafetá desbotado, cor de chocolate, violeta e verde brilhante para ela; o mesmo para ele.

Lanvin, mesma coisa. Marni, suéteres gigantes com cara de desfiados, e estampas floridas grandes, para mulheres e homens igualmente. Pelo final da temporada, isso tinha se tornado tão comum que eu nem reparava mais. Só via roupas.

Parece-me que estamos diante de uma mudança sistêmica interessante e potencialmente significativa –uma mudança que responde a alterações sociais e culturais, especialmente entre as gerações mais jovens.

Mas também fico imaginando até que ponto isso vai ecoar para além da moda e da cultura pop. (Alô, Harry Styles, Billy Porter e Lil Nas X.) O que você acha?

Guy Tremblay: Vamos deixar de lado o gênero, por um momento, e falar de sexo. Mais que o recente agnosticismo de gênero –que é só o mais recente desdobramento de um processo iniciado um século atrás, com Chanel e mulheres de calças–, o que mais me impressiona na moda recente é a rejeição a diferenças anatômicas que ainda continuam a distinguir homens de mulheres.

Com a exceção de alguém como, digamos, Ludovic de Saint-Sernin, que entremeou os modelos ostensivamente femininos de seu desfile com homens que vestiam roupas que pareciam lingeries Cosabella, muitos estilistas apresentaram roupas tão volumosas que jamais seria possível imaginar que quem as veste seja portador de características sexuais secundárias.

Friedman: Mas essa é a minha questão: será que chegamos ao fim da progressão natural iniciada na década de 1920 por Gabrielle Chanel? Afinal, se agora aceitamos mulheres de calças sem piscar, o que acredito que todo mundo faça (exceto talvez certos grupos religiosos), homens de saia e vestido não deveriam receber a mesma recepção?

É exatamente dessa maneira que a Comissão de Direitos Humanos da cidade de Nova York interpretou a lei relativa a códigos de vestimenta profissional: um empregador tem o direito de exigir que os seus funcionários usem determinada roupa, mas apenas se essa roupa estiver disponível para os dois sexos (ou seja, se mulheres teriam de usar saltos altos, homens também deveriam arcar com a mesma obrigação).

E se continuamos a nos sentir incomodados com homens de vestido e saia, como imagino a maioria das pessoas ainda faça fora desse minúsculo setor da moda, não seria por que continuamos a nos apegar às velhas estruturas de poder?

Ter acesso a roupas classicamente femininas é visto como uma forma de tirar o poder dos homens? Isso de alguma forma os enfraquece, já que as mulheres são supostamente o “sexo frágil”? A moda pode estar adiante da curva, quanto a isso.

Tremblay: Há muita coisa bonita por aí. Mas independentemente da qualidade dos modelos que estamos vendo, o clima pode ser austero ao ponto do puritanismo. É o mesmo dos dois lados do oceano, quer na coleção APOTTS, de Aaron Potts, que trazia modelos envolvidos em aventais de ráfia que ocultam as formas do corpo, inspirados pela tribo Hama do vale do rio Omo (Etiópia), quer, em escala mais ampla, na coleção de Valentino, em que os corpos continuam envoltos por grandes volumes de tecido, tão arquitetônicos quanto orgânicos. O que está acontecendo, quanto a isso?

Friedman: Discordo de você quanto à falta de sexo. Sim, alguns estilistas –Raf Simons e Aaron Potts, como você diz– colocaram todo mundo em gigantescos aventais de trabalho, mas muita gente fez de peças reveladoras um acessório importante. E mesmo Raf disse que ele considerava os volumes sedutores, quando conversamos depois do desfile.

Mas também é verdade que aqueles que se concentraram nos corpos, como Donatella Versace, o fizeram ao modo tradicional de gênero. O desfile dela começou com meia dúzia de homens sem camisa percorrendo a passarela em passos diferentes, e depois se pendurando em cordas de seda para galgá-las, se contorcendo, até o teto.

Era como uma espécie de palácio cafona de sultão. E depois vieram aqueles corpetes dolorosos e os saltos de stripper no desfile feminino da Saint Laurent.

Por outro lado, na Marni, homens e mulheres usavam os mesmos vestidos listrados de jérsei, que espiralavam em torno de seus corpos e destacavam fendas laterais. Os modelos mostrados não deixavam muito para a imaginação. Qual é a sua impressão sobre isso?

Tremblay: Você se lembra de “Unzipped”, documentário que Douglas Keeve fez sobre Isaac Mizrahi em 1995? Isaac tinha criado uma coleção baseada em “Nanook of the North”, e descobriu, pouco antes do desfile, que outro estilista tinha feito exatamente o mesmo?

Às vezes minha sensação é a de que existe uma espécie de mente coletiva de estilistas. Um par de temporadas atrás, em Paris, a GmbH mostrou uma coleção na qual os modelos homens apareciam de ombros ou peitos nus. Agora todo mundo, de Versace a Willy Chavarria, faz o mesmo. Minha sensação é a de que a moda está correndo atrás da cultura real, ou tentando.

Se você passar algum tempo na mídia social, vai descobrir rapidamente que muitos homens estão adotando elementos tradicionais dos trajes e dos cuidados de beleza femininos. Não é preciso muita imaginação para imaginar que homens de vestido venham a ser considerados normais no local de trabalho, ou que isso venha a deixar de ter qualquer importância. Já há kilts em uso.

Mas embora alguns estilistas europeus tenham apresentado uma visão meio caricata do desejo, ainda não estamos vendo muita coisa que seja positiva quanto ao sexo e o corpo.

Talvez seja um efeito colateral de nosso isolamento forçado, ou de viver nas telas. A última coisa sobre qual penso ao ver moda nas telas, hoje, é sedução. Lembro-me sempre da afirmação de Vivienne Westwood sobre o fato de que todo mundo quer se vestir bem para poder tirar a roupa logo depois na companhia de outra pessoa. É como se tivéssemos esquecido o sex appeal.

Friedman: Bem, sim, quanto à nudez. Mas também é preciso blindagem, para dizer ao mundo quem você é e a que grupo você pertence. E é por isso que o agnosticismo de gênero importa. Você realmente acha que caras vão usar vestidos no Congresso, em Wall Street ou mesmo no Facebook, no futuro previsível?

Eu gostaria de acreditar que sim, mas não tenho tanta certeza. Apegamo-nos aos nossos preconceitos de moda, especialmente no que tange a gêneros. Talvez seja por isso que você sinta menos um clima de sedução.

Minha sensação em geral é a de que uma coleção pode comunicar um foco físico ou um foco político, mas raramente ambos. E no momento a mensagem sobre gêneros –sobre os corpos nas roupas e sobre quem tem direito a usar o quê (e a ideia de que todos deveriam ter direito de usar qualquer coisa)— parece ter ganhado precedência.

Tremblay: Não acho que vamos ver muita gente usando Palmo Spain em Wall Street, em breve. Mas se trabalhar como repórter nesse ramo me ensinou alguma coisa foi que a moda é a primeira linguagem de qualquer evolução cultural.

E mesmo que os estilistas não sejam capazes de articular plenamente a mensagem que eles estão transmitindo (quase sempre não são), eles nos oferecem atualizações sociopolíticas ao desconsiderar os marcos oficiais de gênero.

Eve Kosofsky Sedgwick, uma das expoentes da teoria dos gêneros, estava certa ao apontar que essas categorias e falsas oposições são úteis para os Estados mas nem tanto para os indivíduos.

A melhor coisa –a mais essencial, na verdade– sobre o que está acontecendo nas passarelas é que vemos as divisões arbitrárias de gênero se desmontando em tempo real. Fazia muito tempo que eu não curtia tanto um desfile quanto curti o mais recente da Miu Miu.

Miuccia Prada, rainha permanente das ambiguidades, nos ofereceu sua visão do físico como político, mostrando meninas vestidas de meninos, vestidos de meninas, vestidas com um estilo levemente masculino.

Friedman: Também gostei muito do desfile da Miu Miu, especialmente a meditação sobre uniformes escolares e uniformes de trabalho –que, como você aponta e Prada deixou absolutamente claro, são classicamente masculinos.

Thom Browne vem brincando com essa ideia há anos e sempre veste os homens em variações femininas do terno cinzento padrão. O que me reconduz ao ponto original: as mulheres adotaram camuflagem masculina, originalmente, em parte para se infiltrar, primeiro nos locais de trabalho, depois nos escritórios executivos e por fim nos conselhos (outro clube do Bolinha).

Agora que grande parte do planeta está enfim aceitando a ideia de que garotas podem dirigir o mundo –agora que temos uma mulher como vice-presidente (embora ela insista em usar terninhos)–, será que os homens vão começar a vestir camuflagem feminina? É isso que a moda vem sublinhando.

O balanço de poder está virando. Essas distinções eram apenas formulações históricas obsoletas. É esse o simbolismo do que está acontecendo. E, honestamente, aposto que isso pode fazer com que muitos homens percam as calças de susto.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci. 

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