Jô Soares vai fazer muita falta, tanto no Brasil quanto na minha vida
Como substituir alguém de quem fui fã por quase 60 anos?
Descobri quem era Jô Soares quando eu tinha apenas seis anos de idade. Recém-chegado a São Paulo, eu buscava instintivamente entender os códigos da minha nova cidade. Muitos deles vinham da TV Record, que era mais forte em terras paulistanas do que no Rio, onde eu nasci.
Era na Record que havia programas que mudariam a MPB para sempre, como Jovem Guarda, O Fino da Bossa e o Festival da Música Popular Brasileira. A emissora também exibia a primeira sitcom nacional propriamente dita, Família Trapo, que dominava a audiência das noites de domingo. Eu adorava.
Ao lado de Carlos Alberto da Nóbrega, Jô Soares era um dos criadores do programa. Também integrava o elenco, mas num papel relativamente secundário: o do mordomo Gordon, um trocadilho óbvio com o formato de seu corpo. Os personagens principais eram o patriarca Otelo Pepino Trapo, vivido por Otelo Zeloni, e seu cunhado folgadão, Carlos Bronco Dinossauro, tipo inesquecível de Ronald Golias.
Jô chegou ao estrelato definitivo na década seguinte, ao se transferir para a Globo. Durante quase 20 anos, foram dele as noites de segunda-feira, que a emissora dedicava aos humorísticos. No primeiro, Faça Humor, Não Faça Guerra, Jô dividia o comando com Renato Corte Real. Na sequência vieram Satyricom (que, apesar do título que remete a um filme de Fellini, se definia como uma "sátira aos meios de comunicação"), Planeta dos Homens e, por fim, a consagração total com Viva o Gordo.
Eu não perdia um único episódio desses programas. Como quase todo mundo, incorporei ao meu vocabulário bordões como "tem pai que é cego", "o menino fez o quê, Nair?" e "pero no te vas a hacer falta?".
Jô não era um camaleão como seu amigo Chico Anysio, que se transformava em outra pessoa ao incorporar seus personagens. Mesmo travestido de mulher ou ajoelhado como o tirânico Reizinho ("sois rei! Sois rei"), Jô era sempre ele mesmo. O que, de certa forma, gerava uma empatia imediata com o espectador.
Meu favorito era Norminha, a cantora ingênua obcecada por seu noivo Irajá, que respondia a todas as perguntas com um lacônico "é!". Norminha costumava cantar uma música de seu duvidoso repertório em cada esquete, e o sucesso foi tamanho que, em 1972, a gravadora Som Livre lançou um LP do personagem, algo inédito para a época. Eu comprei, claro, e ouvi até quase furar o vinil. Décadas depois, a pérola foi relançada em CD, e claro que eu comprei também.
Jô Soares passou a ocupar ainda mais espaço no meu HD mental quando se bandeou para o SBT em 1987 e criou o "Jô Soares 11 e Meia" um ano depois, o primeiro talk show brasileiro a seguir fielmente o formato americano do gênero –com banda ao vivo, plateia e monólogo de abertura. Em 2000, criador e criatura voltaram para a Globo, e a atração foi rebatizada como "Programa do Jô".
Durante 28 anos, até 2016, Jô Soares era um porto seguro no fim da noite. A gente ligava sem precisar saber quem eram os convidados do dia: quase sempre, alguém interessante, fosse uma celebridade absoluta ou um desconhecido que começava a se destacar na mídia.
Jô era um entrevistador maravilhoso. Colocava seus convidados à vontade, mas também não se furtava a enfiá-los em eventuais saias justas. Mas tampouco era perfeito. Principalmente nos últimos anos, às vezes parecia desinteressado, sem saber direito quem estava diante dele. Ou então falava demais, sem dar espaço para réplicas. Mas nada disso retira o brilho e a importância que seu talk show teve na história da TV brasileira.
Além do mais, Jô Soares foi muito além da TV. Atuou em diversos filmes, escreveu livros, dirigiu inúmeras peças de teatro, escreveu crônicas e até desenhou charges para jornais. Era um autêntico "homem do Renascimento", à la Leonardo da Vinci, capaz de se sair bem em muitas áreas diferentes.
É estranhíssimo pensar num Brasil –e na minha vida– sem a presença insubstituível de Jô. Mesmo tendo aparecido pouco desde que deixou a TV, ele ainda era uma enorme referência em quase todos os ramos da cultura.
Seus múltiplos talentos, sua delicadeza pessoal, seu humor refinado, tudo isso vai fazer uma falta enorme. Ainda mais num momento em que o Brasil atravessa uma fase tão sombria. De qualquer forma, o legado de Jô Soares permanece. O gordo morreu, mas viva o gordo!
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