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Tony Goes

Ataques a criadores da série sobre Marielle Franco são injustos e contraproducentes

Lugar de fala existe e merece respeito, mas não deve determinar quem pode tratar de certos assuntos

A vereadora Marielle Franco - Renan Olaz/CMRJ
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Na sexta passada (6), a Globoplay anunciou dois projetos sobre a ex-vereadora Marielle Franco, assassinada há dois anos. O primeiro é uma minissérie jornalística, cujo primeiro episódio será exibido nesta quinta (12) na Globo. No dia seguinte, todos os seis episódios estarão disponíveis na plataforma de streaming.

O segundo projeto é uma série que dramatizará a vida de Marielle e as investigações que, até hoje, não identificaram os mandantes do crime. A idealizadora do projeto é a jornalista e roteirista Antonia Pellegrino. George Moura, que escreveu minisséries como “Amores Roubados” e “Onde Nascem os Fortes” (Globo), chefiará a equipe de roteiristas. A direção ficará a cargo de José Padilha, cujo currículo inclui os dois longas “Tropa de Elite” e a série “O Mecanismo” (Netflix).

Todos os três são brancos. Só isto já bastou para muita gente cair de pau nas redes sociais: nenhum deles, por sua cor, estaria autorizado a lidar com a história de Marielle, que era negra, lésbica e nascida na favela.

Padilha tem um agravante. “O Mecanismo” ficcionalizou a operação Lava-Jato. Trocou nomes, alterou a ordem dos fatos, inventou personagens. Nada disso escondeu que a série tratava de Lula, do PT, do petrolão e do processo que desembocou no impeachment de Dilma Rousseff. Isto tornaria o diretor, aos olhos de alguns, um militante de direita –e, portanto, inadequado para o projeto.



Eu entendo de onde vem essa revolta. No Brasil, faltam oportunidades para diretores negros, para roteiristas negros, para artistas negros. Faltam oportunidades para negros, ponto. Agora, partir dessa indignação mais do que justa para desqualificar os envolvidos na série é um pouco demais. 

Antonia Pellegrino era amiga pessoal de Marielle Franco. É casada com o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), de quem a vereadora morta foi assessora durante anos. Antonia também foi uma das primeiras a chegar à cena do crime, e tem total apoio da família de Marielle. Está batalhando há tempos para colocar seu projeto em pé: bateu em muitas portas e encontrou na Globoplay a melhor acolhida. 

George Moura é prata da casa da Globo. É natural que a empresa queira um contratado seu na chefia da equipe de roteiristas. Além de autor de vários sucessos, Moura também é, indiscutivelmente, um dos melhores profissionais do ramo no Brasil. Além do mais, ele ainda não anunciou os membros de seu time: quem disse que não haverá negros nele? Todo projeto da Globo agora tem.

Para completar, é absurda a histeria com que José Padilha vem sendo atacado na internet. Já tem até charge sugerindo que ele fará uma série sobre o "suicídio" de Marielle. A esquerda brasileira simplesmente não o perdoa por “O Mecanismo”.

Padilha teria cometido crime de lesa-majestade por não acreditar na inocência de Lula. De nada adiantou ele admitir, no ano passado, que agora tampouco acredita em Sergio Moro. Acontece que o cara é um dos maiores cineastas do país, e um dos poucos que têm entrada em Hollywood. Também é o dono de uma obra consistente e engajada. Para um projeto que sonha em ser exportado para o mundo inteiro, é um nome "high profile", mais do que adequado.

Lugar de fala existe e deve ser respeitado. Mas é complicado quando a luta por direitos e igualdade implica em regras rígidas sobre quem está ou não autorizado a abordar determinados assuntos. Só mulheres podem falar de mulheres, só gays podem falar de gays, só trans podem falar de trans, e assim por diante. Será que é esta a arte que queremos?

Em seu curto mandato, Marielle Franco mexeu com o maior flagelo que assola o Rio de Janeiro: as milícias. Foi muito além da pauta identitária, e pagou um preço altíssimo por isto.

Hoje ela é ainda maior do que foi em vida, pois se tornou um símbolo. Que deveria unir os que têm ideais semelhantes, e não dividir. O debate sobre a presença dos negros no mercado de trabalho é urgente e indispensável, e só está começando. Mas é bom lembrar que esse joguinho de acusações e cancelamentos na bolha progressista é contraproducente, pois só tem um vencedor: a extrema-direita.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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