Depois de maltratá-lo, Brasil se esqueceu de Patricio Bisso
Morto no domingo (13), artista passou as últimas décadas em semireclusão
A morte de Patricio Bisso não mereceu uma única menção nos telejornais noturnos da Globo nesta segunda-feira (14). A notícia só surgiu na homepage do UOL (emprega do Grupo Folha) nesta terça-feira (15), levando a um breve texto no blog de Amaury Jr. Na maioria dos grandes jornais e sites brasileiros, a morte do artista argentino que viveu por mais de duas décadas entre nós teve apenas registros pontuais.
Só a Folha de S.Paulo deu mais atenção ao fato. Além do obituário assinado por Gustavo Fioratti e por mim, o jornal ainda publicou, em sua versão online, textos de Joyce Pascowitch, Lilian Pacce e Zeca Camargo – três jornalistas que conviveram com Bisso na década de 1980, quando ele colaborava com a Folha com textos e ilustrações.
Mas, afinal, ele era tão importante assim? Para quem assistiu a alguma de suas performances, ou o assistiu na TV encarnando a sexóloga Olga Del Volga, sim. Sem se definir como drag queen ou travesti, Patricio Bisso borrava a fronteira entre os gêneros muito antes de termos como não binário entrarem em circulação.
Também, é claro, era talentosíssimo: seus figurinos eram de extremo bom gosto, sua presença no palco era luminosa, seu traço era elegante, seu humor era impiedoso (e sua primeira vítima era sempre ele mesmo). Só que ninguém com menos de 40 anos (talvez 50?) tem uma lembrança nítida do que Patricio Bisso representou para a cena cultural paulistana da década de 1980. E muito por causa dele, que submergiu em meados da década de 1990.
O que foi que aconteceu? O próprio Bisso dizia, nas raras entrevistas que deu desde então, que estava cansado. Principalmente de não conseguir dinheiro para projetos mais ambiciosos, como o acalentado longa-metragem estrelado por Olga Del Volga. Farto do Brasil e dos brasileiros, ele voltou a morar em sua Buenos Aires natal, no mesmo prédio que sua mãe.
Depois de um longo período sem dar notícias, Patricio Bisso reconectou-se aos amigos brasileiros através de seu perfil no Facebook. Ali postava, várias vezes por dia, fotos vintage, cenas clássicas de Hollywood ou imagens bizarras, sempre acompanhadas por legendas humorísticas em português. Descrevia-se como “jubilado” (aposentado) e jamais falava do próprio trabalho.
Não tinha website nem canal no YouTube. Os vídeos em que aparece são raros, e muitos têm má qualidade. Seu álbum “Louca pelo Saxofone”, com as músicas do show do mesmo nome, foi relançado em CD há uns dois anos, mas não está disponível nas plataformas de streaming.
Bisso jamais tocou no assunto, mas suspeito que o que o fez deixar o Brasil foi sua prisão em flagrante na noite de 3 de dezembro de 1994. Ele acabava de terminar a temporada do show “Bissolândia”, o mais elaborado de sua carreira, em que recriava canções e visuais dos personagens da Disney. Estava, talvez, no auge.
Mas o sucesso de nada lhe adiantou ao ser surpreendido pela polícia fazendo sexo com dois outros homens em plena praça Roosevelt, no centro de São Paulo. Foi levado para a delegacia, passou a noite em cana, pagou fiança e saiu dizendo ter apanhado lá dentro. Não duvido nada: se a homofobia come solta ainda hoje, imagine nos anos 1990, quando os direitos LGBT eram menos que miragem.
Bisso voltou para a Argentina e dizia não ter mais nada a realizar –já havia feito tudo e não sentia falta de nada. Não era verdade. Em 2007, sem sair de Buenos Aires, desenhou os figurinos do filme “O Passado”, de Hector Babenco (com quem havia trabalhado duas décadas antes, em “O Beijo da Mulher Aranha”). Em 2008, o musical satírico “Castronauts” foi exibido em um festival em Nova York. Bisso assinava o texto do espetáculo, e sonhava em transformá-lo em filme.
O que fizemos para que um talento raro como Patricio Bisso escolhesse viver tanto tempo entre nós? O que fizemos para que, depois, ele praticamente fugisse do Brasil? Talvez nunca saibamos ao certo. Resta a obra que ele deixou, ou traços dela. Uma obra fugaz, como a de todo grande ator, mas que causou uma impressão profunda em quem teve a sorte de conhecê-la.
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