Com o vídeo de 'Apeshit', Beyoncé e Jay-Z se reposicionam como obras de arte
Os Carters estão fissurados consigo mesmos
Pela terceira vez consecutiva, Beyoncé lançou um álbum sem aviso prévio. Afinal, para quê campanha de marketing, se você é a atual rainha do pop? Pegar o mundo de surpresa é mais eficiente para ela que divulgar faixas novas a conta-gotas, como faz a maioria dos outros artistas.
Dessa feita, a cantora divide o novo trabalho com o marido, o rapper Jay-Z. A ponto de assinarem “Everything is Love”, disponibilizado no sábado (16) na plataforma Tidal, como um casal: The Carters, o sobrenome original dele, que ela adotou com gosto depois de casada.
O disco vem sendo encarado como o encerramento de uma trilogia sobre a vida conjugal de ambos. O primeiro volume foi “Lemonade”, o álbum-solo de Beyoncé lançado em 2016, quando ela explicitou ao mundo, através das letras das canções, as frequentes puladas de cerca do marido.
Jay-Z respondeu com “4:44”, seu álbum-solo de 2017, assumindo a culpa e pedindo perdão. Agora os Carters celebram a paz doméstica duramente conquistada com um álbum em conjunto. E se proclamam não só como felizes no amor ou como artistas influentes: os dois são, por si próprios, verdadeiras obras de arte.
Isso fica patente no clipe de “Apeshit”, também divulgado no dia 16 de junho. O título remete a uma expressão algo grosseira (“Merda de Macaco”, em tradução literal), que significa algo como “enlouquecido” ou “fissurado”.
Os Carters estão fissurados consigo mesmos. Com o poder, com o dinheiro e com a relevância cultural que acumularam. E escolheram o cenário apropriado para exibir este deslumbramento: o Museu do Louvre, em Paris, o maior e mais importante do mundo.
Claro que é de se admirar o acesso que Jay-Z e Beyoncé tiveram ao lugar, originalmente um Palácio Real e, hoje, um magnífico centro de arte e cultura. Mas não é raro que o Louvre permita filmagens em seus corredores (“Os Sonhadores”, filme de 2003 de Bernardo Bertolucci, tem cenas lá, só para dar um exemplo). E a arte moderna costuma aparecer no Louvre de vez em quando, em exposições de nomes contemporâneos que dialogam com as grandes obras do passado.
Ao permitir que a realeza da música de hoje grave um clipe lá dentro, o Louvre não está exatamente fazendo propaganda de si mesmo, até porque não precisa: as filas para entrar são imensas, todos os dias e a qualquer hora. Mas Beyoncé e Jay-Z ajudam o museu a se reposicionar como uma instituição vibrante, moderna e em nada alheia ao mundo exterior.
O casal também se reposiciona, num lugar ainda mais alto que aquele onde já estavam. E se apropriam do Louvre, um templo da arte ocidental, masculina e branca, ressignificando-o de maneira africana, feminina e negra.
A Mona Lisa, a Vitória de Samotrácia e a Vênus de Milo –as três obras mais emblemáticas do Louvre– aparecem com proeminência no vídeo de “Apeshit”, e sofrem intervenções visuais de Beyoncé. Diante de cada uma delas, a cantora aparece como uma reinterpretação pessoal (e africana, e feminina, e negra) do que se vê logo atrás.
Muitos outros quadros do museu também são vistos no vídeo, em contraposição a imagens de casais negros se abraçando. As interpretações possíveis são muitas: de críticas à violência que os negros sofrem no mundo inteiro à afirmação de que a arte não branca também é digna de um palácio.
A internauta Queen Curly Fry publicou em seu perfil no Twitter um extenso comentário analisando o contexto de cada obra que aparece em “Apeshit”. Quem se interessar pelo assunto (e entender inglês) não pode perder.
Mas não é preciso nenhum guia para se deslumbrar com “Apeshit”. Depois de “This is America”, de Childish Gambino, esse é o vídeo mais denso e rico do ano, além de esteticamente impecável. Não por acaso, ambos tratam de um assunto cada vez mais incontornável: o racismo.
Será que Beyoncé e Jay-Z são mesmo obras de arte em si mesmos? Só o tempo dirá. Mas, por enquanto, já são artistas grandiosos.
Comentários
Ver todos os comentários