Biblioteca da Vivi

Curta a quarentena com o mais sórdido de Rubem Fonseca

De contos a romances, ele elevou a literatura policial brasileira

O escritor  Rubem Fonseca em 1975
O escritor Rubem Fonseca em 1975 - Paulo Moreira / Agência O Globo
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São Paulo

No último dia 15, em meio à pandemia do novo coronavírus, o Brasil perdeu um dos maiores escritores da história, o mineiro de Juiz de Fora Rubem Fonseca. Aos 94 anos, ele deixa uma obra extensa, famosa por romances, mas também muito reconhecida por seus contos. Nem sempre se tem o dom para ambas as coisas: condensar o ser humano em umas poucas páginas ou explorá-lo vertiginosamente na vertical. Fonseca sabia.

Tanto que minha primeira dica, principalmente para quem ainda não o leu, é que desbrave o romance "Agosto". Entendo que livrarias e sebos (meus favoritos) estejam fechados, mas a Livraria Cultura e a Saraiva, por exemplo, entregam em casa. Para que possui a facilidade do Kindle, então (aquele livrinho que se parece com iPad e tem a capacidade de armazenar milhares de livros), é ainda mais vantajoso, pois os ebooks são mais baratos do que a versão física.

"Agosto" (1990) é um relato histórico baseado em fatos reais e mistura ficção para narras a sucessão de fatos que levou ao suicídio do presidente Getúlio Vargas em 1954. O livro deu origem a uma minissérie homônima, exibida pela TV Globo em 1993 e protagonizada por Vera Fischer e José Mayer.

Esta é a obra que apresenta o honesto comissário Mattos (caráter sempre foi característica dos protagonistas de Fonseca) e evidencia os traços que marcaram os livros do autor: a violência, a podridão, o submundo e a corrupção. Algo bem lembrado na coletânea "Secreções, Excreções e Desatinos (2001)", que nos traz da profundeza da alma humana o que de mais escroto existe por lá. ​

Outro que chegou à tela, desta vez a do cinema, também é um dos meus romances favoritos de Fonseca: "Bufo & Spallanzani" (1985), cruamente do gênero policial, um dos livros que elevou esse tipo de literatura ao primeiro escalão para deixar de ser mero entretenimento. Algo que ocorreu em paralelo com o trabalho de bons autores americanos, como James Ellroy e Michael Connelly. No enredo de "Bufo", o personagem Ivan Canabrava investiga o caso de um fazendeiro que morreu pouco após fazer um seguro de um milhão de dólares.

Agora, para deixar ainda mais claro minha predileção pelos romances doentios e sádicos de Fonseca, sugiro a leitura de "A Caso Morel" (1973) e "A Grande Arte" (1983), estes, dos primeiros que ele lançou. "Morel" é a estreia de Fonseca e também um clássico, pois introduz os elementos de sexo e violência que permeariam todo o seu jogo. O Seguinte é também marcante por apresentar o detetive Mandrake, protagonistas de outras histórias.

Da série de contos, talvez o melhor seja "Lúcia McCartney" (1969), outro que chegou aos cinemas, com Odete Lara (1920-2015). Ele apresenta uma garota de programa ao mesmo tempo em que adentra a vida de moradores das grandes cidades. "O Cobrador" (1979) é um dos motivos pelos quais Fonseca costuma ser chamado como gênio da narrativa curta: a bem da verdade, sempre foi mais reconhecido pela crítica pela vasta produção de contos. Realista, a história usa a violência sexual para falar do submundo do Rio de Janeiro dos anos 1970.

Quem prefere os contos do escritor e simpatiza com a sordidez de suas tramas vai gostar mais de "Axilas" (2011), que lembra o mundo prostituto da coletânea "Secreções, Excreções e Desatinos" (2001), menos pelo retrato do ser humano no fundo do poço e mais pela exploração de suas taras peculiares.

Uma das obras-primas de Rubem Fonseca, "Feliz Ano Novo" foi lançada em 1975 e, na época, teve sua circulação proibida pelo regime militar. Foi recolhida por ter sido considerada uma "afronta à moral e aos bons costumes". A linguagem seca e violenta da coletânea de contos se tornou uma das características mais visíveis de um dos maiores gênios brasileiros. É um dos melhores livros de contos da literatura nacional.

Seja qual for a escolha, o leitor terá a oportunidade de mergulhar na mente doentia dos personagens de Fonseca, tão maníacos e humanos quanto o seu genial e discreto criador.

Biblioteca da Vivi

Vivian Masutti, 35, é jornalista formada pela Cásper Líbero e bacharel em letras (português e francês) pela USP (Universidade de São Paulo), onde também cursou a Faculdade de Educação e obteve licenciatura plena em língua portuguesa. No Agora, é coordenadora da Primeira Página.

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