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Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times

Como é assistir a 'The Crown' com britânicos antimonarquistas: 'Isso me causa engulhos'

Sentimento republicano aumentou no Reino Unido desde a estreia da série, em 2016

Elizabeth Debicki e Dominic West em cena da 5ª temporada de 'The Crown' - Netflix/Divulgação
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Alex Marshall
Londres
The New York Times

Na noite de segunda-feira (14), Finna Ayres e Matt Turnbull se reuniram na casa de Ayres em Londres para fazer algo que seus amigos considerariam chocante: assistir à mais recente temporada de "The Crown", a série da Netflix sobre os altos e baixos da família real britânica.

Ayres, 80, arquiteta aposentada, e Turnbull, 35, estrategista de marca, são membros da organização Republic, que quer abolir a monarquia no Reino Unido e substitui-la por um chefe de Estado eletivo. Nenhum dos dois era fã da série, mas eles aceitaram um convite para assistir à nova temporada, como uma experiência.

A noite que se seguiria tinha o potencial de ser tão perturbadora que Turnbull trouxe dois pacotes de cerveja com ele. "Se tenho de aguentar horas de hagiografia da família real, preciso estar bem lubrificado", ele disse.

O primeiro episódio tinha começado há poucos minutos quando o ator Dominic West, que interpreta o príncipe Charles, apareceu na tela. "Gosto dele", disse Ayres, antes de definir o ator como "gostoso".

"Mas preferiria que não tivesse manchado sua reputação interpretando o príncipe Charles", ela acrescentou.

Ayres e Turnbull continuaram com os comentários brincalhões durante a meia hora seguinte, até chegarem a uma cena em que a rainha Elizabeth (Imelda Staunton) se reúne com John Major (Jonny Lee Miller), primeiro-ministro britânico durante a maior parte da década de 1990, para pedir que o contribuinte britânico financie a reforma de seu iate. Enquanto a cena transcorria, Turnbull inclinou a cabeça e colocou as mãos diante dos olhos, mas depois começou a espreitar por entre os dedos. "Oh, Deus, isso me causa engulhos", ele disse.

Quando começou a parecer que Major talvez estivesse disposto a aceitar o apelo da rainha por assistência financeira, Turnbull disse que se sentiu zangado. "É assim exatamente que imagino a família real", ele disse, acrescentando que os Windsor custavam centenas de milhões de libras ao ano para os contribuintes britânicos. A série "me causa calafrios", ele disse, e pouco depois se levantou para ir à cozinha e apanhar outra cerveja.

Desde que "The Crown" estreou, em 2016, vem crescendo o apoio do público britânico à abolição da monarquia e sua substituição por um chefe de Estado eleito –o apoio cresceu de 17% dos eleitores britânicos entrevistados em 2016 para 22% em maio deste ano, de acordo com o instituto de pesquisa de opinião pública IPSOS.

Pauline Maclaran, professora do Royal Holloway College, Universidade de Londres, que escreveu um livro sobre a monarquia e a cultura de consumo britânica, disse que não havia qualquer estudo acadêmico que avaliasse se "The Crown" contribuiu para essa mudança. Mas ela acrescentou que existiam indicações incidentais de que o programa havia alterado a percepção de algumas pessoas sobre a família real. A temporada inicial da série mostrava a rainha Elizabeth 2ª —que morreu em setembro— como alguém com quem as pessoas podiam se identificar, disse Maclaran, e muitos jovens disseram a jornalistas que agora tinham uma visão mais calorosa sobre ela por causa disso.

Mas Maclaran disse que o retrato de Charles na série é mais complicado —especialmente se considerarmos a relação tumultuada dele com sua primeira mulher, Diana— e que isso pode ter virado algumas pessoas contra o então príncipe. A temporada que estreou recentemente "não poderia ter vindo em pior hora" para o novo rei Charles 3º, acrescentou Maclaran.

A nova temporada da série certamente alimentou a preocupação no Reino Unido quanto à exatidão do retrato que ela pinta sobre a família real. No mês passado, o ex-primeiro ministro Major disse ao jornal britânico The Mail on Sunday que a série não passava de "um amontoado de bobagens maldosas" por ter dado a entender que Charles o tinha pressionado a apoiar a abdicação da rainha. A atriz Judi Dench reforçou essa crítica escrevendo ao jornal The Times de Londres para argumentar que as cenas fictícias da série eram "cruelmente injustas para com os indivíduos e prejudiciais à instituição que representam".

Tendo em vista esse clima, os republicanos – nome pelo qual são conhecidos os adversários da monarquia no Reino Unido – talvez devessem estar aplaudindo "The Crown". Graham Smith, o presidente do grupo Republic, disse que sentia que a nova temporada talvez viesse a beneficiar seu movimento, especialmente por retratar os membros da família real como frios e distanciados das pessoas comuns. A organização que ele preside agora tem 4,5 mil membros pagantes, disse Smith, e alguns dos integrantes mais novos lhe disseram que "The Crown" foi o motivo para sua adesão. Ele disse que as reclamações quanto à precisão do programa ao retratar a História eram só "choradeira privilegiada" da parte dos monarquistas.

Smith disse que o crescente apoio ao republicanismo tem mais a ver com escândalos recentes envolvendo a monarquia, incluindo acusações de agressão sexual contra o príncipe Andrew e o tempestuoso abandono da família real pelo Príncipe Harry e sua mulher, Meghan. Esses acontecimentos corroeram o respeito pela instituição, disse Smith.

A cobertura generalizada da mídia ao funeral da Rainha Elizabeth 2ª, em setembro, acrescentou Smith, também fez com que algumas pessoas questionassem por que uma morte em uma determinada família havia sido elevada acima de outras. No mês do funeral da rainha, doadores destinaram 70 mil libras (cerca de US$ 82 mil) ao Republic, o que Smith definiu como "uma quantia significativa" para uma organização relativamente pequena (no ano passado, o grupo Republic recebeu 170 mil libras em doações totais).

Em entrevistas antes de assistir a "The Crown" na noite de segunda-feira, Ayres e Turnbull descreveram suas jornadas pessoais rumo ao republicanismo, nenhuma das quais dependeu de um programa de TV. Ayres disse que suas opiniões remontavam a um acontecimento específico na década de 1970, quando a mãe da rainha Elizabeth 2ª visitou a escola de seus filhos. A escola delimitou áreas específicas para professores, pais e faxineiros, disse Ayres, para todos os efeitos dividindo os presentes por status. Em seguida, a Rainha Mãe, que morreu em 2002, "perambulou" por lá, "cambaleante", durante 15 minutos e se foi.

"Foi obsceno, as divisões que isso causou em nossa comunidade", disse Ayres, assim como o fato de a Rainha Mãe "ser protegida como um objeto precioso".

Ayres se tornou republicana naquele mesmo dia, ela acrescentou. Desde então, ela coletou numerosos panfletos de oposição à monarquia, muitos dos quais detalham o custo do sistema monárquico, e também tem uma série de cartões postais satíricos zombando da família real (dois deles pendurados na parede de seu banheiro).

Turnbull disse que sua conversão ao republicanismo foi mais gradual, enquanto ele aos poucos passava a acreditar que era errado elevar uma família acima das demais. "Na escola, foi-nos dito que a democracia é o valor mais importante em nossa sociedade, mas o nosso chefe de Estado não é eleito", ele observou. A reação à morte de Diana, em 1997, intensificou esses sentimentos, acrescentou ele. A mãe de Turnbull chorou mais tempo por Diana do que "por alguns membros da família", ele disse.

Enquanto a dupla assistia a trechos da série, suas emoções oscilavam loucamente. Quando chegaram a um episódio chamado "The Way Ahead", que retrata Charles como um príncipe que batalha para modernizar a monarquia e estabelecer uma organização sem fins lucrativos para beneficiar jovens em áreas carentes, Ayres pareceu atordoada. "Isto é propaganda deslavada", ela disse. Mas durante outra cena, quando Charles se dirige à rainha chamando-a de "mamãe", Ayres desatou a rir. "Nenhum dos meus filhos me chama assim desde que eles tinham 10 anos", Ayres afirmou.

A nova temporada de "The Crown" é a primeira a apresentar linhas de enredo que questionam fortemente a existência da monarquia, e Charles e outros personagens expressam preocupação sobre sua relevância. O episódio final começa com imagens de um especial de televisão britânico intitulado "Monarquia: A Nação Decide", no qual os telespectadores telefonam para votar sobre manter ou abolir a monarquia (cerca de 2,6 milhões de votos foram registrados, e 34% dos participantes declararam que prefeririam que a rainha deixasse de ser sua soberana).

No episódio, Diana (Elizabeth Debicki) é mostrada telefonando repetidamente para o programa a fim de votar a favor da abolição da monarquia. Enquanto Diana votava, Ayres ria. No entanto, Turnbull pareceu surpreso.

"Isto realmente aconteceu?", ele perguntou, falando sobre a votação telefônica televisionada. Turnbull não estava ciente de que, 25 anos atrás, a TV britânica estava discutindo abertamente se o país deveria se tornar uma república.

Apesar de surpresas agradáveis como essa, perguntados se voltariam a assistir a "The Crown", a resposta de ambos foi simples: Não.

Ayres acrescentou: "Tenho coisas melhores a fazer".

Tradução de Paulo Migliacci

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