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Cena da primeira temporada da série "Reboot" Divulgação/Hulu

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The New York Times

Em uma reunião recente nos escritórios do serviço de streaming Hulu, regada a cafés e água mineral cara, meia dúzia de executivos discutia a proposta de uma nova série. Bem, não exatamente nova. A ideia era repaginar "Step Right Up", uma sitcom do começo da década de 2000 sobre uma família misturada.

Embora a série tivesse terminado abruptamente depois da saída de um dos atores principais, a surpresa é que ela havia encontrado público robusto no streaming, acima de tudo, diz uma especialista em análise de dados, entre as famílias e a audiência de humor.

"Mas você tem certeza de que não é só o pessoal que deixa a TV ligada em casa por causa do cachorro?", pergunta um colega.

O chefe da equipe expressa outra preocupação: será que versões repaginadas ainda são quentes? A equipe responde com uma lista muito longa de títulos, que inclui "Fuller House", "How I Met Your Father", "Veronica Mars", "Gilmore Girls", "Gossip Girl", "Anos Incríveis", "O Quinteto", "Party Down", e mais.

"Que diabos", diz o chefe, convencido. "Vamos refazer alguma coisa original".

Essa é a cena de abertura de "Reboot", uma sitcom do showrunner Steven Levitan ("Modern Family", "Just Shoot Me!"), com uma premissa tão impecável que parece absurdo que ninguém tenha pensado na ideia antes. A série, que será disponibilizada no Brasil pelo Star+ em data ainda não divulgada, é um bolo de camadas que traz uma sitcom familiar tradicional que se passa dentro de uma comédia moderna de escritório, tudo isso em forma de paródia aos bastidores de Hollywood. A série também é um referendo –muito engraçado– sobre o progresso das sitcoms nas últimas décadas, e sua migração das redes de TV aberta para a TV a cabo e os serviços de streaming.

"Estamos falando de um olhar realmente afetuoso sobre o nosso negócio", disse Levitan, falando de um escritório caseiro decorado com fotos de cenas de "Modern Family". "Os personagens bizarros, as situações estranhas, as reuniões importantes que as pessoas fazem sobre coisas inacreditavelmente triviais e embaraçosas. Tudo isso é material excelente para uma comédia".

A ideia para "Reboot" surgiu na cabeça de Levitan pela primeira vez alguns anos atrás, quando "Roseanne" ressurgiu e terminou cancelada depois de um tuíte racista da estrela da série, Roseane Barr, e depois voltou uma vez mais, agora sem Barr, sob o título "The Conners". O drama que ele presumia estivesse acontecendo nos bastidores dessa história intrigava Levitan.

"Lembro-me de pensar comigo mesmo uma série sobre o que estava acontecendo por trás das cenas seria algo que eu gostaria de assistir", ele disse. "Modern Family" ainda tinha algumas temporadas pela frente. Levitan presumiu que outra pessoa iria sonhar com a mesma ideia, nesse meio tempo, mas isso não aconteceu. Ou, no mínimo, nenhuma proposta parecida foi aprovada. Ele decidiu levar sua ideia ao Hulu. (Levitan tem um contrato com a 20th Television, que, como o Hulu, é parte do grupo Disney.)

Perguntei a Karey Burke, presidente da 20th Television, que ajudou a desenvolver "Reboot", se os executivos do Hulu na vida real tinham expressado alguma indignação sobre a sátira do programa a eles. (O episódio piloto zoa impiedosamente com "The Handmaid’s Tale", por exemplo.)

"Eles adoram", respondeu. "E não sei se outras plataformas seriam capazes de lidar com a zombaria de um jeito tão gracioso quanto eles".

Craig Erwich, presidente da ABC Entertainment, Hulu e Disney, confirmou o fato, dizendo que ele e seus colegas reais gostaram da brincadeira. "Nós amamos", ele disse. "É engraçado. E é engraçado porque provavelmente soa verdadeiro".

Nem todas as piadas têm como alvo os serviços de streaming. Muitas satirizam as redes de TV, onde Levitan passou a maior parte de sua carreira. Outras tratam das mudanças de formato das sitcoms. Muitas destas últimas são expressadas em forma de discussões entre Gordon (Paul Reiser), que criou "Step Right Up", e Hannah (Rachel Bloom), roteirista e diretora da geração milênio que propôs a versão repaginada.

"A comédia evoluiu desde a última vez que você escreveu para a televisão", diz Hannah, sarcasticamente. "Na verdade, para ser sincera, espécies inteiras evoluíram".

Parte dessa evolução afastou as comédias de TV de seu estilo tradicional de gravação, diante de audiências ao vivo e com múltiplas câmeras —o formato das comédias de rede de TV na era de "Step Right Up"— e as conduziu a formatos mais sofisticados visualmente, gravados em estilo de cinema. A mudança das redes para o streaming, uma transição que "Reboot" explora, provocou outras alterações. A nova "Step Right Up" não precisa mais respeitar a estrutura de 22 minutos de duração e roteiros formados por Trama A, Trama B e Trama C, com interrupções para os comerciais. Material mais explícito sexualmente agora é permissível, e palavrões também.

"É o mundo das sitcoms, mas no streaming", disse Reiser em uma entrevista, falando da transição para o streaming em geral. "Ou seja, você pode dizer o que quiser, e não é necessário buscar risadas, necessariamente".

Mas as velhas restrições não morrem fácil. Embora "Step Right Up" tenha assumido um novo visual, a maioria dos episódios de "Reboot" ainda honra a estrutura tradicional de uma história em três atos. E se a ideia de preparar a piada e soltar o bordão perdeu terreno, as tramas A, B e C permanecem. "É inerente", disse Levitan. "Eu trago nos ossos esse senso de estrutura e trama para uma série".

E ainda assim, como "Reboot" demonstra, e como assistir de novo à maioria das comédias das décadas de 1980, 1990 e 2000 comprovará, o conteúdo mudou. Piadas que menosprezam mulheres, pessoas "queer", deficientes e pessoas não brancas raramente vão ao ar, hoje. Levitan encara isso como uma limitação, mesmo que positiva.

"Toda a cultura ‘woke’, e o #MeToo, mudaram os lugares para onde você pode ir, de modo geral positivamente", ele disse. "O que complica é que todo mundo tem tanto medo de ofender alguém que você nem se arrisca a chegar perto dos limites".

Bloom, uma das criadoras da série "Crazy Ex-Girlfriend", vê a nova sensibilidade como oportunidade, e não como restrição ou motivo de angústia. "Agora as pessoas precisam demonstrar atenção, de uma maneira que antes não era pedida a elas", disse a atriz. "Acho que isso está nos tornando pessoas melhores, comediantes melhores". E ela se diverte interpretando Hannah, mesmo em seus momentos de ocasional falta de humor.

"Uma garota que usa suéteres folgados e vive ansiosa?", Bloom disse. "Conheço alguém assim". Reiser, que se descreveu como "um pouco mais conscientizado do que Gordon", concorda com sua colega. "Eu não entendo que as pessoas reclamem que ‘essa é uma piada que você não pode mais fazer’. E eu pergunto por que alguém desejaria fazê-la. Ou quanto a pessoa realmente precisa fazer uma piada assim –uma piada rude e insensível?"

Algumas das cenas mais fortes de "Reboot" são as que se passam na sala de roteiristas e dramatizam esta tensão. Os escritores que Hannah contratou —um homem "queer" e duas mulheres não brancas— se chocam abertamente com os escritores judeus veteranos trazidos por Gordon. Em uma cena, um escritor mais jovem critica uma piada proposta pela veterana roteirista de TV Selma (Rose Abdoo, que, trabalhando em surdina, é a atriz mais brilhante da série.)

Selma rebate dizendo que "sempre achei que os gays eram divertidos". Por fim, eles encontram uma piada de que todos gostam. Envolve uma queda encenada. Tombos são engraçados, sempre.

Mas "Reboot" não é apenas engraçado. Há uma doçura persistente e uma sensação de que as pessoas são capazes de mudar, em geral para melhor.

"Isso é algo que me empolga muito no programa", disse Keegan-Michael Key, um dos astros de "Step Right Up". "É uma marca registrada de Steve Levitan, não é, aquela sensação de que as pessoas estão abertas a mudar?"

"Step Right Up" é a série repaginada que tem posição central na história, mas quase todos os personagens estão se repaginando, de uma forma ou de outra, se recuperando de divórcios, vícios, teatro regional. Levitan mencionou que fãs lhe contaram que "Modern Family" os ajudou a passar por momentos difíceis em suas vidas. Ele espera que "Reboot", um show sobre a elite de Hollywood, gente que anda de Bentley, investe em imóveis e tem conexões com famílias reais nórdicas, possa fazer o mesmo.

"Levar um pouco de riso para a vida das pessoas é algo que realmente me alegra", ele disse.

"Reboot" não se posiciona diretamente quanto ao valor das histórias repaginadas. A maioria das versões repaginadas, na vida real, parece pouco mais do que uma tentativa de faturar, e poucas melhoram com relação ao original. Algumas são tão horrendas que na verdade envenenam retroativamente a história de origem. Os criadores e estrelas de "Reboot" tinham opiniões diferentes sobre o formato. Ou não tinham opinião alguma.

"Acho que não cabe a mim definir", disse Levitan. "Pois é, prefiro não despertar a ira dos roteiristas de humor". Reiser sobreviveu à versão repaginada de "Mad About You" praticamente intacto, e parecia otimista sobre o formato. Bloom, nem tanto.

"A parte mais empolgante de uma versão repaginada, para mim, é o anúncio de que ela vai ser feita", ela disse. "Mas os resultados em geral decepcionam".

Key pareceu mais positivo. Ele acredita que versões repaginadas podem funcionar, pelo menos teoricamente, e poderiam ser até inovadoras, se a ideia básica for convincente. "Eu realmente acredito que isso é possível", ele disse. "É tudo uma questão de descobrir o ângulo".

Até que Hollywood descubra esses ângulos, teremos de nos contentar com algo original. Como "Reboot".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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