Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Cinema

Por que é tão difícil adaptar os grandes romances de Jane Austen?

'Persuasão', da Netflix, é mais discreto e introspectivo do que predecessores

Cena do filme 'Persuasão' - NICK WALL/NETFLIX
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sarah Lyall
The New York Times

Poucos escritores (excetuado Shakespeare, que é sempre um caso especial) tiveram suas obras reinventadas com tanta frequência, ou tão liberalmente, quanto Jane Austen. Nos palcos, nas telas e em livros, seus romances foram retomados como farsas cômicas, como contos de fantasia, como musicais extravagantes de Bollywood e como comédias românticas picantes.

Foram transplantados para, entre outros lugares, Cincinatti, Déli, Fire Island, Los Angeles, a Londres atual e, no caso do romance de vampiros "Crepúsculo", inspirado por "Orgulho e Preconceito", para a modorrenta cidadezinha de Forks, no estado de Washington.

Assim, por que é que a mais recente adaptação –uma versão apimentada de "Persuasão" dirigida por Carrie Cracknell e em cartaz na Netflix– fez com que tantos espectadores decidissem se recolher aos seus leitos depois de severos faniquitos? O que terá levado a crítica Dana Stevens, da revista Slate, por exemplo, a definir o trabalho como "não só a pior adaptação de Austen como um dos piores filmes dos último tempos"? Ou Philippa Snow, em sua resenha para a revista New Republic, a ressaltar os hábitos modernos de consumo de álcool da personagem principal, afirmando que o filme "se passa não só no começo do século 19 como em uma happy hour permanente"?

A resposta está nas expectativas que os fãs de Austen, um grupo de pessoas muito passionais e cheias de opiniões, trazem consigo ao assistir a qualquer trabalho baseado na obra da escritora. O problema não é que a versão de Cracknell tome liberdades com a história original –todas as adaptações o fazem, e de fato é por isso que elas existem- mas sim a espécie de liberdade que os realizadores decidiram tomar.

"Persuasão" é o menos vistoso dos seis grandes romances de Austen. Último de seus livros completados, publicado em 1818, o romance é mais discreto e introspectivo do que seus predecessores, livros mais exuberantes e mais apreciados pela audiência de massa, ainda que muitos dos devotos de Austen o tenham como seu trabalho favorito.

Anne Elliot, a mulher de 27 anos que protagoniza o romance, passa boa parte de seu tempo perdida em seus pensamentos, consumida pelo arrependimento e aparentemente conformada quanto a desempenhar um papel coadjuvante na vida dos demais, em lugar de ser a heroína de sua própria história.

Mas desde o momento em que o trailer de "Persuasão" foi divulgado, os puristas de Austen se ergueram em um frêmito de indignação coletiva. O trecho mostrava Anne não mais como uma mulher reservada, pensativa e resignada a sofrer sozinha, mas engajada em autopiedade performativa dirigida diretamente à câmera, à maneira de "Fleabag", e fazendo comentários ferinos sobre seus parentes. Em dado momento, falando sobre o capitão Wentworth, o homem que ela continua a amar depois de tê-lo rejeitado por motivos tolos anos antes, ela observa, anacronicamente, que "somos piores do que ex-namorados. Somos amigos".

O lançamento do filme confirmou as picuinhas dos fãs. O sentimento parecia ser o de que trabalhos de época fantasiosos protagonizados por heroínas combativas, maliciosas e melodramáticas são aceitáveis em "Bridgerton" e "Dickinson", duas recentes séries para serviços de streaming, mas não servem para Jane Austen.

Na revista Harper’s Bazaar, Chelsey Sanchez escreveu que os personagens parecem "irreconhecíveis comparados aos originais".

"Anne Elliot seria o tipo de pessoa a dirigir tiradas ferinas e sarcásticas diretamente à audiência?", Sanchez escreveu. "E alguém gostaria que o fizesse? Quando perdemos a beleza do subtexto -o ponto mais forte de Austen como narradora– o que exatamente ganhamos em retorno?"

As melhores adaptações de Austen são fiéis ao espírito do original –à trama básica, à forma pela qual os personagens interagem uns com os outros e em sociedade– e confiam no mundo em que estão colocadas, mesmo que esse mundo seja um grupo de homens gays em busca de amor e de sexo casual na Fire Island moderna, em "Orgulho e Sedução", do serviço de streaming Hulu.

"As Patricinhas de Beverly Hills" (1995), de Amy Heckerling, que transpunha "Emma" para uma escola de segundo grau elitista na Califórnia da década de 1990, se saiu bem porque refletia uma compreensão completamente digna de Austen quanto às gradações sociais, mesmo as mais bizarras. Dotada de um nome deliciosamente modernizado –Cher Horowitz em lugar de Emma Woodhouse–, Alicia Silverstone canalizava habilidosamente a arrogante autoestima da protagonista, e a maneira pela qual sua empáfia reduzia seus encantos, mas também sua capacidade de reconhecer os próprios erros e redimi-los.

Sob o mesmo critério, o roteiro de Emma Thompson para a versão de "Razão e Sensibilidade" dirigida por Ang Lee em 1995 dava ao livro uma perspectiva feminista –enfatizando as injustiças da primogenitura e retratando as dificuldades enfrentadas por uma mulher solteira e de futuro financeiro incerto -mas sem perder a fidelidade às verdades emocionais e possibilidades românticas do original.

E o altamente estilizado "Emma" (2020), de Autumn de Wilde, foi coreografado quase como uma ópera kabuki –com uma palheta de cores ousada e divertida, figurinos notavelmente excêntricos e destaque para os elementos de farsa e anseio erótico-, mas destacando personagens reconhecíveis e que se comportavam da maneira que esperávamos deles.

Escritores e dramaturgos que lidaram com trabalhos de Austen dizem que o desafio de uma adaptação é permanecer dentro dos limites da visão de mundo da escritora e ao mesmo tempo definir com clareza aquilo que está aberto a mudança.

"É preciso saber as regras antes de quebrá-las e é preciso que você veja com clareza quais são as regras dentro de seu trabalho", disse a atriz e teatróloga Kate Hamill, cujas adaptações de Austen para o palco incluem uma versão ruidosa de "Razão e Sensibilidade" na qual um coro de fofoqueiros e intrujões narra a ação. "É preciso que a adaptação funcione tanto para as pessoas que curtem o livro original quanto para aquelas que não têm qualquer relação com ele".

A escritora britânica Gill Hornby, que escreveu dois romances –"Miss Austen" e o recém-lançado "Godmersham Park"–que tem Jane Austen como personagem, disse que tem muita tolerância para com adaptações ousadas, mas com algumas ressalvas.

"Minha posição instintiva é a de que qualquer coisa pode funcionar desde que os personagens sejam preservados e as questões morais básicas –esnobismo é revoltante, fofocas fazem mal, ninguém gosta dos pretensiosos– sejam tratadas com seriedade", ela disse, por email.

Hornby também afirmou que a linguagem da adaptação deveria ser apropriada ao meio social dos personagens. Um dos aspectos mais incômodos do novo "Persuasão" é o modo pelo qual o dialogo incorpora coloquialismos modernos a um drama de época clássico, com cenários e figurinos da era da regência britânica do começo do século 19. ("Dickinson", a febril e onírica série da Apple TV+ que imagina uma vida alternativa para a poeta Emily Dickinson, consegue incorporar esse tipo de anacronismo porque o recurso é parte integral da história desde o começo: é óbvio que não estamos vendo uma família americana do século 19 parecida com qualquer outra a que já tenhamos sido expostos.)

É muito estranho ouvir um personagem de "Persuasão" recorrer a um sarcasmo geográfico moderninho do tipo "uma mulher nota cinco em Londres é uma mulher nota 10 em Bath".

"Você não pode cruzar as ondas", disse Hornby. "Se você decide manter o figurino de época, precisa manter a linguagem de época. Isso não significa que seja preciso reproduzir o diálogo do livro integralmente ou seguir exatamente o estilo de Austen. É claro que é preciso levar em conta o realismo da tela, ante as demandas literárias da página. Existe um meio do caminho –uma tradução confiável e acessível".

Talvez ainda mais chocante seja o fato de que a nova adaptação abre mão do andamento lento do romance, solapando seu tom melancólico e adulterando o ritmo cuidadoso de Austen ao permitir que os personagens revelem seus sentimentos e motivações cedo demais. "Ao tecer uma narrativa cômica com base em uma narrativa trágica, o filme solapa o objetivo de Austen", escreveu Emmeline Cline no LitHub. "Acho que ela queria que chorássemos, não que ríssemos".

É claro que nenhuma adaptação de Austen satisfará os fãs mais rigorosos. Houve objeções até mesmo a talvez a melhor cena da minissérie "Orgulho e Preconceito" da BBC, também de 1995 (um ano excelente para adaptações), aquela em que Mr. Darcy (Colin Firth) emerge de um lago com a camisa molhada colada sedutoramente ao seu peito musculoso.

Hamill, que adaptou obras clássicas de outros escritores para os palcos, disse que, em resposta a uma de suas peças, ela certa vez recebeu um email de um fã de Austen que começava com "Cara Sra. Hamill: como é que a senhora pôde?"

"Nenhum fã de Bram Stoker, Homero ou [Nathaniel] Hawthorne bateu à minha porta para reclamar", ela disse. Os fãs de Jane Austen são notavelmente apaixonados".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem