Série 'Ruptura' usa distopia e operação cerebral para separar vida e trabalho
Com Adam Scott, produção da Apple TV estreia após adiamentos
Com Adam Scott, produção da Apple TV estreia após adiamentos
"Severance", um drama enervante sobre o trabalho, deveria ter começado suas gravações em março de 2020, mas os lockdowns da pandemia levaram a adiamentos que duraram até quase o final do ano. Por isso, em outubro de 2020, Adam Scott, 48, o astro da série, deixou sua família em Los Angeles e viajou para Nova York.
Por mais de oito meses, nos dias em que ele podia trabalhar –a produção foi suspensa algumas vezes por exames positivos de coronavírus, e Scott mesmo teve Covid em fevereiro de 2021–, ele era levado a um estúdio movimentado no South Bronx, onde passava o dia cercado de colegas (mascarados e protegidos por escudos). Depois, ele era levado de volta a um silencioso apartamento em Tribeca, onde passava as noites sozinho, o que representava um estranho paralelo para com a série.
"Severance", que recebeu o nome "Ruptura" no Brasil e está disponível na plataforma Apple TV+, adota uma abordagem especulativa quanto à questão do equilíbrio entre vida e trabalho. Scott interpreta Mark Scout, chefe de departamento na Lumon Industries, uma empresa sinistra. (Quando foi a última vez que uma série de TV retratou uma grande empresa que não o fosse?)
Mark e seus colegas passaram, voluntariamente, por um procedimento cirúrgico conhecido como desligamento, que cria um bloqueio mental e impede que o eu profissional da pessoa tenha qualquer lembrança ou conhecimento sobre sua casa, e vice-versa. É como se fosse um acordo de confidencialidade extremamente rigoroso para a alma.
Scott nem sempre teve um bom equilíbrio entre vida e trabalho. "Meus limites são todos desordenados", ele disse. "Costumo investir parte grande demais de meu senso de valor na ideia de que eu esteja ou não esteja trabalhando, e em minha percepção do trabalho que fiz, depois de concluído. E isso não é saudável". Vivendo sozinho, longe da mulher e dos dois filhos, e lamentando a perda de sua mãe, que morreu pouco antes da pandemia, a sensação dele era a de que seu equilíbrio não estava melhorando.
Mas ainda assim, o trabalho lhe dava um lugar onde colocar esses sentimentos. O papel exigia que ele se alternasse entre o inocente Mark "interno", um executivo inócuo de médio escalão, e o machucado Mark "externo", que lamenta a perda de sua mulher. Algumas das cenas tinham um ar de comédia de escritório, um gênero que Scott conhece intimamente. (Imagine "Parks and Recreation", uma série em que ele trabalhou por seis temporadas, recriada por Jean-Paul Sartre.)
Outras cenas pareciam mais filmes de suspense, dramas, ficção científica –estilos que ele conhece bem menos. Mas, em última análise, seu papel duplo permite que Scott faça aquilo que faz melhor: interpretar um cara comum e bonitinho mas ao tempo tempo mostrar a dor e a vergonha e a paixão por sob aquela pose.
"Ele tem uma compreensão inerente de o quanto é estranho ser normal", disse Ben Stiller, produtor executivo e diretor da série. "Existe uma normalidade nele, um lado de cara comum. Mas ele também tem a consciência de que não é um cara normal de verdade".
A única coisa que Scott já quis ser foi ator. Quando criança, em Santa Cruz, Califórnia, ele viu equipes de filmagem transformando sua rua em uma locação para uma versão televisiva de "Vidas Amargas". A rua se tornou uma estrada de terra. As casas reverteram às suas origens vitorianas. Cavalos e carruagens passavam diante do gramado de sua casa. Isso é mágico, ele pensou, e desde aquele momento decidiu fazer tudo que pudesse para se tornar parte do que define como "aquele louco mundo da magia e da imaginação".
Sempre que tinha um momento de solidão (e, como filho mais novo de pais divorciados, esses momentos eram frequentes), Scott se imaginava como herói de seu filme –normalmente um filme de Steven Spielberg. Ele começou a atuar no segundo grau, mas fez uma pausa por um ou dois anos quando passou a se preocupar com a possibilidade de que fazer teatro diminuísse sua popularidade. Mas também jogava polo aquático, e no fim as coisas se resolveram.
Ele se matriculou na American Academy of Dramatic Arts, em Los Angeles. Um colega de classe que rapidamente se tornou seu amigo, Paul Rudd, já admirava o trabalho de Scott desde aquela época. "Eu sempre pensava que aquele cara era realmente engraçado", recordou Rudd. "E seco, e realmente brilhante, é claro".
Scott se formou aos 20 anos, batalhou para entrar no mercado e passou uma década e meia fazendo pequenos trabalhos que mal permitiam que pagasse as contas –alguns episódios aqui e ali, um papel coadjuvante em um filme acolá– sem jamais sentir que ele realmente estava estabelecido. "Fiquei pendurado por um fio durante 15 anos", disse Scott.
No começo da década de 2000, sua futura mulher, Naomi Scott (então Naomi Sablan), perguntou se ele tinha um plano alternativo. "E a reação dele a isso foi tão, tão dolorosa", ela disse. "A resposta dele foi que não, não tinha plano algum".
E então o sucesso chegou. Ele conseguiu um papel em "Quase Irmãos", com Will Ferrell e John C. Reilly, depois que outro ator desistiu. Em seguida, estrelou como Henry em "Party Down", comédia cult do canal Starz, substituindo Rudd, que tinha outros convites. Ele não conseguiu um papel em "Parks and Recreation", inicialmente, mas os produtores o contrataram no final da segunda temporada para interpretar Ben Wyatt, o par amoroso de Leslie Knope (Amy Poehler). De repente, ele tinha se tornado um inesperado galã.
Em "Quase Irmãos" ele interpretava um yuppie engraçadinho, mas seus papéis em "Party Down" e "Parks and Recreation" pareciam mais pessoais. Ele aproveitou todos os seus anos de insucesso para criar Henry, um ator cuja carreira termina deformada por uma série de comerciais de cerveja, e Ben, um contador todo certinho mas com um passado reprovável.
"Eu com certeza sentia todas aquelas coisas", disse Scott. "Depois de passar 15 anos batalhando sem ter muito que mostrar como recompensa, e de ter me ferido um pouco com as circunstancias dessa cidade".
Ele amou os dois trabalhos. "A caraterística que o define é que ele realmente deseja fazer um bom trabalho", disse Michael Schur, um dos criadores de "Parks and Recreation".
Mas ele não amava tudo que vinha com o trabalho. "Comecei a ser reconhecido, e a sensação era completamente diferente do que eu tinha imaginado durante aqueles 15 anos de batalha", disse Scott. "A sensação era mais a de ter alguma doença no meu rosto do que a de ser reconhecido".
"Não parecia uma aceitação calorosa e um abraço", ele prosseguiu. "Sempre imaginei que eu sentiria amor ou algo assim, mas na verdade é um sentimento estranho, de isolamento".
Scott estava falando por vídeo, de sua casa em Los Angeles. A conversa começou com algum atraso porque ele derramou um café na mesa em que fica seu computador. O café expresso veio de uma cafeteira italiana de última geração que demora meia hora para esquentar, e que ele limpa com o maior carinho a cada noite. Se isso parece o hábito de alguém que se preocupa muito com os pequenos detalhes, bem, pode ser que sim!
Na conversa, ele foi franco, autocrítico, determinadamente gentil, mas sem sacrificar o humor seco que muitas vezes define seus trabalhos nas telas. Ele apareceu na janela de vídeo usando óculos, pálido, com uma barba desarranjada, e vestindo uma camiseta e suéter sob uma camisa de flanela. Meia hora mais tarde, ele tirou a camisa.
"Desculpe, sua pergunta me fez suar", ele disse. (A pergunta: "O que fez ‘Party Down’ tão boa?") Ele não ama falar com a imprensa, mas fez parecer que tinha tempo de sobra. E me disse diversas vezes que eu estava indo muito bem.
"Suas reservas de humildade são grande", disse Nick Offerman, seu colega no elenco de "Parks and Recreation". O ator também acrescentou que o que Scott faz de melhor –na tela mas talvez também fora da tela– é abraçar o que ele definiu como "uma normalidade meio nerd, o tipo de comportamento que a maioria das pessoas tenta evitar, se conseguir, porque é humano demais". (Offerman também me pediu para perguntar a Scott o que ele faz para deixar seu cabelo com tanto volume, mas ele não quis responder.)
Scott não é um sujeito cool. Fã ardoroso, ele criou um podcast para explicar o quanto ama o U2. O entusiasmo dele pelo R.E.M. é lendário. Seus personagens muitas vezes vão um pouquinho longe demais, querem demais as coisas. (Uma prova? "The Comeback Kid", episódio da temporada quatro de "Parks and Recreation" em que Ben, desempregado, mergulha fundo em animação com bonecos de massa. E calzones.)
Mas diversos de seus colegas apontam para um lado reservado que existe nele –uma sensação de que ele retém alguma coisa ao atuar, o que torna seu desempenho ainda mais rico. "Há alguma coisa na maneira pela qual ele olha", disse Schur. "Uma sensação de que existe uma profundidade lá, de que existe algo a que não temos acesso imediato".
Poehler, colega de Scott em "Parks and Recreation", ecoa essa observação. "Há uma parte muito interna, secreta e sigilosa dele, como ator", ela disse.
Essa tensão o torna perfeito para os papéis duplos de "Severance". A parte dele que se esforça demais funciona bem para o Mark interno, não importa o quanto o trabalho seja bizarro. E a reserva o ajuda no Mark externo, que atenua sua dor com álcool, gracejos e distância.
"É o mesmo cara", explicou Scott. "A diferença é que um lado é mais ou menos limpo, e o outro viveu muitos anos e passou por muitas coisas". Interpretar o Mark externo o fez perceber o quanto ele havia isolado sua dor pela morte de sua mãe. E assim isso também está no trabalho que ele faz.
As gravações foram longas e, por conta dos protocolos da pandemia, muitas vezes solitárias. Alguns dias foram passados quase totalmente nas salas sem janelas da Lumon Industries –só luzes fluorescentes, separações plásticas e entorpecedores carpetes cobrindo o assoalho de parede a parede. "Isso com certeza me deixava louco", disse John Turturro, colega de Scott na nova série. Scott é mais ameno em sua definição. "Foram oito meses estranhos", ele disse.
Mas ele tinha um emprego –o único emprego que já quis. Por isso, a cada dia que um exame negativo de Covid assim permitia, Scott, que nunca trabalhou em um escritório, chegava sem reclamar ao escritório falso da série. Porque tinha um trabalho a fazer.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci
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