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Guillermo del Toro diz que fugiu dos clichês noir em 'O Beco do Pesadelo'

Diretor mexicano já pensava em fazer regravação há mais de 30 anos

Bradley Cooper e Rooney Mara em "O Beco do Pesadelo" - Divulgação
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São Paulo

"Um bando de caras usando venezianas, um ventilador e chapéus de feltro". É assim que o cineasta Guillermo del Toro, ganhador do Oscar por "A Forma da Água" em 2018, descreve os clichês do estilo noir. "Eu não queria fazer nada disso", afirma ele sobre "O Beco do Pesadelo", atualmente nos cinemas.

O longa, que conta com Bradley Cooper no papel principal, é baseado no livro de mesmo nome, escrito por William Lindsay Gresham, publicado em 1946. Sua primeira versão para os cinemas, "O Beco das Almas Perdidas", saiu no ano seguinte, auge do ciclo noir dos anos 1940, com Tyrone Power como protagonista.

Segundo Del Toro, o estilo noir, no sentido de narrar "uma queda, uma tragédia", estará lá, mas nada dos clichês, como saxofone ou uma voz em off. "Nenhum destes elementos", ressalta ele. "‘O Beco do Pesadelo’ é parte do cânon do film noir, honrando a história do gênero", afirma o produtor J. Miles Dale.

Del Toro conta, em entrevista cedida ao F5 pela Disney, que já pensava em contar a história há cerca de 30 anos. Na época, no entanto, os direitos estavam nas mãos da Fox, o que tornava impossível o projeto do diretor mexicano. Mas isso mudou quando ele passou a trabalhar com o estúdio, hoje pertencente a Disney.

A produção começou no início de 2020, com as gravações divididas em duas partes, a primeira em um parque de diversões e a segunda na cidade grande. Assim que foi concluída a primeira parte, no entanto, a pandemia chegou. Foram seis meses sem gravar, seis meses com o tempo deteriorando o parque construído pela produção. Veja abaixo trechos da entrevista com o diretor.

Ron Perlman interpreta Bruno em "O Beco do Pesadelo". Ele foi a inspiração para esta adaptação há cerca de 30 anos. Como foram esses primeiros passos?
Ron e eu conversamos em sua casa na época em que fizemos "Cronos". Tínhamos assistido "Gunga Din" e depois "Entre Deus e o Pecado". E Ron me disse: "Sabe, tem um filme chamado 'O Beco do Pesadelo', com Tyrone Power, e eu adoraria fazer um remake".

Então, eu comprei o livro de William Lindsay Gresham. Mas como poderíamos conseguir os direitos? Conversamos com o nosso manager na época, e descobrimos que o filme não só era um título de catálogo da Fox, o que tornava impossível a compra dos direitos, como também era um filme cuidadosamente guardado na Fox para remakes.

Tyrone Power atuou com uma paixão extraordinária, e Zanuck o apresentou com tanta indiferença. Ou estava mais interessado em proteger a imagem de bom rapaz, herói e ídolo da matinê de Tyrone Power. O filme foi considerado como fora do padrão em sua filmografia, portanto, não houve interesse em fazê-lo novamente.

De qualquer forma, simplesmente esquecemos do assunto. E então, Kim Morgan e eu estávamos conversando sobre escrever algo juntos, e pensei, bem, agora estamos na 20th Century Fox —como era chamada na época— e acabamos de fazer "A Forma da Água" para a Fox Searchlight.

Quais elementos do livro não estavam no filme de Tyrone Power? O que te fez voltar ao livro?
Bem, para mim, o filme original é uma das melhores performances que Tyrone Power já fez. O que ele faz ou deixa de fazer com o livro é irrelevante para mim. Nem vou tentar entender como deve ter sido trabalhar dentro do código Hays e daquela forte prisão moral dentro da qual os filmes deveriam existir. O que eu queria fazer era voltar ao material original para tentar recuperar alguns desses elementos freudianos, junguianos e um tanto surrealistas do livro; e, em alguns casos, nem mesmo para ser fiel a ele, mas à minha leitura e ao espírito do livro como eu o percebi.

Quão consciente você estava de querer evitar os clichês do gênero noir em sua versão?
Quando Kim Morgan e eu estávamos conversando –e Kim é uma grande estudiosa do gênero– eu a disse: "A última coisa que quero fazer é um clássico noir", porque na minha opinião, o romance pertence a uma época da literatura norte-americana onde tínhamos "The Day of the Locust" ("O Dia do Gafanhoto"), "They Shoot Horses, Don’t They?" ("A Noite dos Desesperados"), Miss Lonelyhearts e James M. Cain, obras que são sobre a face oculta dos Estados Unidos. O conceito do noir como gênero veio depois e, para mim, é um bando de caras usando venezianas, um ventilador e chapéus de feltro. Eu não queria fazer nada disso. Não queria usar um saxofone ou uma voz em off, nenhum destes elementos.

O film noir é um gênero fortemente afetado pelo horror e o expressionismo alemão. Mas também narra uma queda, uma tragédia. É inevitável: não pela força do destino ou a vontade dos deuses, mas pelas falíveis decisões humanas. O destino do personagem está em suas próprias mãos.

Este é um filme sobre um homem que acredita estar no comando, mas que na verdade está apenas seguindo. Todas as mulheres estão um passo à frente dele, tanto emocional quanto intelectualmente. E em muitos aspectos, o filme é contado do ponto de vista do vilão. Stanton é o personagem com menos princípios morais.

Este é um tema comum em seu trabalho: quem é o verdadeiro monstro? E geralmente não são as aberrações ou os monstros.
Sim, mas de certa forma, esta é a primeira vez que acompanho o anti-herói, e foi algo interessante porque eu realmente queria entendê-lo. Este não é um filme sobre um personagem que não amo. Eu adoro Stanton, inclusive o entendo: é um personagem movido pelo medo... Mas ele faz todas as escolhas erradas.

Originalmente você queria filmar "A Forma da Água" em preto e branco. Já que você definitivamente queria se afastar dos clichês em "O Beco do Pesadelo", foi sempre sua ideia fazer este filme em cores?
Nunca pensei em filmá-lo em preto e branco, mas queria que a direção de arte e a iluminação fossem feitas como se fosse em preto e branco. Com "A Forma da Água", sim, eu tinha o desejo de filmar em preto e branco, mas em "O Beco do Pesadelo", sempre quis que a cor fosse um elemento da narrativa. Na verdade, algumas das cores seguem um código, como de costume: o parque é vermelho, e Stanton deixa o vermelho para trás, mas Molly o carrega com ela. Na cidade, tudo é preto, branco e dourado. Todas as superfícies são espelhadas. É art déco, então fizemos tudo brilhante na cidade, as ripas de aço, os pisos polidos, o vidro. A pintura é feita em esmalte brilhante. Então, conseguimos um claro contraste com a serragem, a lona velha e a madeira do parque. Mas este é um filme em preto e branco que é filmado em cores. A direção de arte foi feita para um filme em preto e branco e existe uma versão em preto e branco do filme que é supreendentemente bela. Usamos muitos verdes, vermelhos e dourados, que trazem os belos tons médios. Usamos a clássica iluminação cruzada de estúdio. Usamos as sombras expressionistas do film noir, mas depois introduzimos uma camada de vermelho, como na cena em que Stan fala pela primeira vez, com aquela lona vermelha atrás dele, mas ele está nas sombras. Esta cena é impressionante em cores, mas também é impressionante em preto e branco.

Durante as filmagens, eu olhava o material gravado em meu computador todos os dias, e ligava o filtro de escala de cinza para ver como ficava. E pensei: "Meu Deus, este filme é lindo tanto em cores como em preto e branco. O que eu faço agora?". Acho que o bom foi escolhermos fazer as duas coisas. Optamos por fazer um filme que, caso necessário, funcione nos dois formatos.

Você reuniu uma equipe de colaboradores não apenas em frente, mas também por trás das câmeras. Claro, temos Richard Jenkins e Ron Perlman, mas por trás das câmeras você já havia trabalho com o diretor de fotografia Dan Laustsen, o figurinista Luis Siqueira e a designer de produção Tamara Deverell, citando apenas alguns. Qual a importância de ter estes colaboradores para realizar sua visão?
Primeiro acontece com um grupo de atores que você escolhe como diretor; você começa a repetir o que chama de sua família, seu elenco de repertório. Você repete Ron Perlman, Federico Luppi. Você volta a certos atores para qualquer papel, seja grande ou pequeno. Como Richard Jenkins em "O Beco do Pesadelo", por exemplo. E então, com o tempo, você acaba se sentindo da mesma maneira com os seus colaboradores mais próximos. Minha colaboração com [o diretor de fotografia] Guillermo Navarro já dura quase vinte anos. Espero que minha parceria com Laustsen dure tanto ou mais tempo. O mesmo vale para Tamara Deverell, Luis Siqueira. Você pode até trocar de posições aqui e ali, mas é sua família. Você está em um meio familiar e pode voltar a se reunir com eles logo em seguida, ou talvez em algum filme mais à frente.

O que vejo nestas colaborações, como por exemplo a parceria de Steven Spielberg com Jansz Kaminski, é um atalho. Quanto mais experiente você for, mais veterano você se tornará em sua narrativa. Você não quer ter que voltar ao estágio inicial do relacionamento, você não sente vontade de lidar com o "Então, o que você faz da vida?". Você quer um casamento consolidado porque estes relacionamentos levarão a tomadas de decisão sérias. Você já deve saber que estas decisões não vêm do ego. Elas não vêm de opiniões ou preconceitos externos. Você deve saber que seu diretor de fotografia está procurando contar a história, não apenas buscando a beleza e etc.

Para dar um exemplo, em meus últimos filmes, Guy Davis já faz parte do meu leque de designer, e adoraria continuar trabalhando com ele. Fiz "Caçadores de Trolls", "Os 3 Lá Embaixo", "The Strain: A Tenção", "A Colina Escarlate", "Círculo de Fogo", entre outros. Ele faz parte do cérebro que cria a aparência e o design dos filmes e é uma pessoa extremamente importante para mim.

As cenas do filme que se passam no parque de diversões são sua oportunidade de ficar à vontade no que diz respeito ao design e a execução. Como foi a criação deste set?
A primeira decisão que tomamos com Tamara e Dan sobre o set do parque foi que queríamos construir um parque de diversões de verdade. Tínhamos visto filmes rodados em cenários com tela azul e percebemos que faltava vida. O vento em nossa locação trouxe movimento e vibração às barracas e tendas, também fez as lonas se baterem e lhes trouxe ritmo, como um batimento cardíaco. Então, dissemos: "Vamos correr este risco e construir o parque". Foi um grande risco porque ele fica exposto à chuva e ao vento. E tivemos muitos dos dois pois construímos o set antes da quarentena e ele ficou montado durante todo o tempo em que estivemos isolados... Bem, parte dele ficou, a outra saiu voando [ri].

O segundo risco era que, se você vai um milímetro além na direção de arte, o cenário se torna fantasioso. Torna-se uma declaração estética. Como: "Olha como eles foram inteligentes no design do parque". Nós queríamos manter a crueza e a realidade de um parque de diversões itinerante. Aquela característica surrada e suja que às vezes tem.

Foi extremamente difícil, por exemplo, encontrar a linguagem adequada para os cartazes do parque. Tinham que parecer reais. Há três ou quatro designers principais na história destes parques de diversão que deixaram sua marca. Tivemos que deduzir e reconstruir sua tipografia, a forma como apresentavam seus cartazes, quais elementos usavam para trazem impacto, para surpreender e fascinar. Frases como: "Eles vivem para seu prazer científico, mas por quê?". A forma de escrever estas frases era muito, muito importante.

O trabalho feito em conjunto com Tamara era tão detalhado que era possível dar zoom e focar em qualquer detalhe do parque, era uma loucura. Todos os sacos de pipoca são da época. Os balões, os troféus, as bonecas, são todos reais. Até as fixações dos cantos das lonas foram feitas à mão em coro e bronze para se adequar ao período. Os talheres, a cozinha, tudo tinha que ser autêntico. É um trabalho enorme. E então, um segundo set cinematográfico igualmente meticuloso deveria ser feito na cidade.

Você mencionou que teve que se conter para não deixar sua imaginação correr solta e, após o sucesso de "A Forma da Água", você teve um nível de liberdade que nunca teve antes. Quanto autocontrole é necessário para não se deixar levar completamente?
Bem, vou colocar desta forma: sempre movemos a câmera, sempre, mas não de uma maneira chamativa. A ideia é manter a câmera baixa, como uma criança curiosa, tentando olhar por cima dos ombros das pessoas, entre as pernas, tentado ter uma boa visão, mas não consigo evitar de sempre acabar colocando a câmera em uma grua, um dolly ou um estabilizador. Houve uma cena em um ônibus, que acabou sendo cortada do filme, que era em um plano subjetivo do personagem de Bradley. E Bradley me disse: "Te desafio a não mover a câmera. Porque é um plano subjetivo em que estou quieto e sentado". "Caramba", pensei, mas pedi para que me trouxessem o tripé. É o único equipamento que nunca uso. No final, ainda filmamos com um dolly, mas mantive a câmera imóvel durante toda a cena. E, então, na tomada seguinte, movi a câmera. Não consigo evitar [ri]. Mas eu acredito que a câmera sempre tem que fazer perguntas, como "o que é isso?" e "o que estou vendo?". Movendo a câmera, eu crio essas perguntas.

Este filme é fundamentalmente sobre um homem que está procurando descobrir quem ele é, portanto, a única opção era que a câmera o seguisse o tempo todo. Toda vez que Bradley está em um novo contexto, a câmera vai atrás dele. Assim, nós vivenciamos este novo contexto com ele.

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