Cena da serie "And Just Like That" Divulgação

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James Poniewozik
The New York Times

"Sex and the City" sempre existiu em uma versão fantasiosa de Nova York, mas sua sequência lançada recentemente na HBO Max, "And Just Like That", tem uma forma diferente de ilusão. Na cena de abertura, Carrie (Sarah Jessica Parker), Charlotte (Kristin Davis) e Miranda (Cynthia Nixon) estão esperando por uma mesa do lado de dentro de um restaurante superlotado.

"Vocês se lembram de quando a lei obrigava todo mundo a manter dois metros de distância?", Carrie brinca. E de repente... a Covid desaparece. Pelo menos na Manhattan mostrada pela série e nas locações de outras séries que parecem ter apertado o botão de "fast forward" epidemiológico.

No mundo real, a variante ômicron pode estar empurrando o número de contágios para a estratosfera, mas na TV a pandemia está se fingindo de morta. Na estreia da temporada 11 de "Segura a Onda", a comédia de (maus) costumes de Larry David na HBO, o caos irrompe em uma festa (especificamente um funeral prematuro) na casa de Albert Brooks quando Larry encontra um armário repleto de papel higiênico e de máscaras KN95, o que expõe o diretor de "Relax" como acumulador de suprimentos na era da Covid. Na era da Covid, ou seja, no passado. Porque a pandemia claramente acabou.

Há quase dois anos, representar a Covid (ou evitar fazê-lo) na TV vem sendo uma escolha entre opções desagradáveis. A maioria das séries optou por ignorar completamente a pandemia. Algumas poucas, como "Distanciamento Social", da Netflix, fizeram dela um tema direto e a tratam com sinceridade, se bem que de uma maneira meio desajeitada.

A posição mais complicada talvez seja a das séries que reconhecem que a Covid existiu, mas declaram ou dão a entender que ela acabou muito antes que o coronavírus decida encerrar de fato suas atividades. "This Is Us", da rede NBC, oferece saltos em sua cronologia e tratou dos grandes temas da Covid –quarentena, conversas por vídeo, desemprego em massa– na temporada cinco.

Mas a estreia da nova temporada da série, esta semana, indica que isso tudo ficou para trás. A temporada dois de "Love Life", da HBO Max, uma história que cobre diversos anos, inclui um episódio sobre a pandemia, mas logo no episódio seguinte a audiência presente a um show no Teatro La MaMa, de Nova York, aparece sem máscaras, em 2021.

Algumas séries sobre médicos, policiais e outros trabalhadores de serviços de emergência tentaram ocasionalmente retratar a Covid, mas sua disciplina quanto ao uso de máscaras não persistiu. "Grey’s Anatomy", por exemplo, levou a pandemia com toda força ao hospital Seattle Grace no final de 2020. Mas no final de 2021, os episódios da série começavam com um alerta de que ela agora "retrata um mundo fictício, pós-pandemia, que representa nossas esperanças para o futuro".

Todas essas são escolhas compreensíveis e talvez as únicas possíveis em termos práticos para os criadores dos programas. Mas elas geram uma forte dissonância cognitiva. Quando assisti a um episódio "pós-pandêmico" de "Grey’s Anatomy", recentemente no serviço de streaming Hulu, um letreiro anterior à abertura da série surgiu na tela me aconselhando a tomar uma dose de reforço da vacina.

Para programas que simplesmente tentam mostrar como as pessoas levam suas vidas cotidianas, os desafios da pandemia são tanto mais sutis quanto mais presentes do que aqueles que foram criados por catástrofes do passado. Depois dos atentados do 11 de setembro de 2001, não houve necessidade de alertas especiais do Departamento de Segurança Interna nos créditos de "Friends", e a fixação subsequente quanto ao terrorismo até serviu como tema natural para as tramas de numerosos thrillers de ação.

A pandemia, por outro lado, restringe a ação. A Covid afeta todos os aspectos da vida cotidiana. As máscaras limitam as expressões faciais. As práticas de distanciamento na vida real significam que o propulsor básico das sitcoms –pessoas juntas em uma sala, escritório ou bar– agora vem acompanhado por uma ansiedade forte.

Muito ocasionalmente, séries se provaram capazes de capturar essa realidade, como na segunda e última temporada de "Betty", comédia realista da HBO cujos jovens personagens circulam de skate pelas ruas de Nova York usando diversas variedades de máscaras.

A refilmagem de "Cenas de um Casamento" chegou a um meio-termo estranho, começando por uma imagem que mostrava elenco e equipe trabalhando sob os protocolos da Covid, mas depois retornando à posição de câmera convencional e mostrando sua história de dissolução doméstica sem máscaras.

O mais frequente é que a TV simplesmente ignore a situação ou expresse o desejo de que ela desapareça. Já no ano passado, havia séries declarando vitória sobre a Covid prematuramente. "Mr. Mayor", que estreou em janeiro do ano passado pela rede de TV americana NBC, traz Ted Danson como prefeito de Los Angeles, um trabalho no qual gerenciar a saúde pública é mais que um pequeno detalhe. O episódio piloto resolve a questão da pandemia com um diálogo sumário no qual o protagonista declara que "e aí Dolly Parton comprou vacina para todos". (Um episódio posterior envolve um surto de piolhos.)

A bicicleta estacionária Peloton que Mr. Big (Chris Noth) pedala até a morte em "And Just Like That" foi outro hábito que pessoas enclausuradas e de certo nível de renda desenvolveram durante os lockdowns, na mesma época em que ele e Carrie deram início ao seu ritual de ouvir LPs em vinil.

Anthony (Mario Cantone) é dono de uma padaria que ele decidiu abrir depois de começar a fazer pães em casa como hobby durante a Covid. E quando Carrie dá uma bronca em Miranda por a amiga estar bebendo demais, em um episódio recente, Miranda responde: "Estou bebendo muito. Sim. Todos nós estávamos bebendo demais na pandemia e acho que eu continuei". Um duplo para mim, por favor.

Existe um toque melancólico ou ingenuamente otimista de correção retrospectiva da realidade –que bom seria se pudéssemos escrever saltos no tempo como esses no roteiro de nossas vidas! Mas há também uma simples questão de timing. A TV em geral trabalha com uma agenda mais rápida que a dos filmes ou livros, mas ela não é instantânea (e as gravações tendem a demorar mais durante a Covid.)

Por isso, os criadores de programas de TV –subitamente convocados, como os educadores e os proprietários de restaurantes, a tomar decisões sobre saúde pública que no passado não eram parte de suas funções– tiveram de adivinhar o futuro da Covid como se fossem uma versão desastrada do Centro de Controle e Prevenção de Doenças trabalhando no campo da cultura pop.

Em alguns casos, o que se vê nas telas agora é uma cápsula do tempo que remete aos dias iniciais de otimismo ingênuo sobre a vacina. A temporada de "Segura a Onda" que se passa pós-Covid encerrou suas gravações algumas mutações atrás, em maio, quando o vírus parecia estar a caminho de desaparecer. (O produtor executivo da série, Jeff Schaffer, disse ao The Hollywood Reporter que a temporada acontece "exatamente agora, se todo mundo fosse inteligente o bastante para se vacinar".)

Um dos episódios da mais recente edição de "Project Runway", produzida no segundo trimestre, pede que os estilistas participantes adaptem "aquelas roupas horrorosas de ficar em casa que todos estamos usando há mais de um ano" e as tornem tão chiques quanto confortáveis, presumivelmente para um futuro pós-Covid.

"South Park", que lançou um especial "pós-Covid" com dois filmes no serviço de streaming Paramount+ em novembro e dezembro, tem um dos prazos de produção mais curtos da TV –o primeiro filme saiu quando a variante ômicron foi descoberta, e o segundo já incluía uma referência a ela. Mas o uso de "pós" na definição "pós-Covid" envolvia viagens no tempo e o retrato de um futuro no qual a humanidade derrotou o vírus –ou quase. (Talvez a mais absurda virada na trama seja a resolução, na qual a série recorre a uma frustrante equiparação entre os dois lados do debate e mostra os defensores e os inimigos da vacinação se desculpando profusamente uns com os outros por todo o rancor exibido nos anos da praga.)

Mas é notável que a televisão, cuja força é a capacidade de acompanhar o momento, tenha em geral trabalhado com tanto esforço para evitar tratar da coisa mais importantes que aconteceu com sua audiência durante os últimos dois anos. É fácil imaginar que as máscaras se tornem um figurino comum e até um clichê, de dramas de época no futuro –uma espécie de sinal visual dos "dias tumultuosos de 2020", da mesma maneira que a imagem da esquina entre as ruas Haight e Ashbury em São Francisco serve para sinalizar "década de 1960". E isso fará com que os futuros espectadores de reprises compreendam ainda menos por que as máscaras não estavam presentes nos programas de TV de nossa época.

Talvez seja perfeitamente apropriado que os produtores de televisão encontrem tanta dificuldade quanto todos nós para lidar com a tempestade de lixo que enfrentamos, incertos de quais serão as regras quando chegar a hora de os episódios irem ao ar e ansiosos por alguma certeza quanto à maneira pela qual a pandemia deve ser enquadrada, entre emergência temporária e forma de vida permanente. E tenho certeza de que muitos espectadores prefeririam ser lembrados de qualquer outra coisa.

Mas somos lembrados da pandemia, de qualquer maneira, mesmo que apenas pela estranheza de ver personagens de TV agindo como se ela tivesse ficado no passado enquanto continuamos em busca de kits de exame rápido de coronavírus. Tenho certeza de que Albert Brooks tem uma tonelada deles em estoque.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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