Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Halle Berry Adrienne Raquel/The New York Times

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Salamishah Tillet
The New York Times

Halle Berry passou a vida inteira lutando, de uma maneira ou de outra. Seja por papéis cobiçados no cinema, seja em benefício de vítimas da violência doméstica, como ela mesma um dia foi, seja contra a percepção de que sua beleza física a isenta de dificuldades.

Mas ela sempre se viu como o azarão em qualquer páreo. E agora, em seu primeiro filme como diretora, foi para esse tipo de papel que ela se escalou. Em “Ferida” (que estreia nos cinemas em 17 de novembro e na Netflix uma semana depois), Berry estrela como Jackie Justice, uma lutadora de MMA humilhada e desesperada por voltar aos combates.

Foi seu papel fisicamente mais exigente: aos 55 anos, a atriz teve de se exercitar por quatro a seis horas diárias a fim de aprender boxe, muay thai, judô e jiu-jitsu, e para redescobrir as técnicas de capoeira que ela aprendeu para “Mulher-Gato”.

Depois ela passava o resto do dia cuidando de suas funções como diretora: procurando locações para o filme em Newark, Nova Jersey; desenvolvendo um roteiro que originalmente era centrado em uma mulher branca, católica e de origens irlandesas, de pouco mais de 20 anos de idade. Coreografando cenas de luta complicadas; e colaborando com seus colegas de elenco, atores de múltiplas gerações. Para qualquer diretor estreante, combinar essas tarefas todas já seria desafio suficiente.

Mas no caso de Justice, Berry está interpretando uma das personagens mais complicadas de sua carreira: além de ser ex-campeã de MMA, Jackie é uma mãe negra de meia-idade, que tem dificuldades para tomar conta de seu filho, Manny (Danny Boyd Jr.), um menino de seis anos a quem ela havia abandonado quando ele era bebê.

“Eu compreendia quem era aquela personagem, Jackie Justice, e de onde ela vinha”, disse Berry em uma conversa por vídeo, do quintal de sua casa em Los Angeles. Depois de esperar seis meses pela aprovação de Blake Lively (a primeira opção para o papel principal), e de ouvir sua recusa, a diretora batalhou agressivamente para interpretar a personagem.

“Eu amei a personagem porque lutar é algo sobre o que sei muito, no plano pessoal e no plano de minha carreira. Compreendo o que é lutar, compreendo o que é não ser ouvida”, disse Berry. “Compreendo os traumas da vida que fazem com que alguém queira lutar, precise lutar, tenha de lutar”.

Ela não só venceu aquele round da luta e ficou com o papel, como a Netflix parece ter decido apostar em Berry, pagando mais de US$ 20 milhões (cerca de R$ 105 milhões) pelo direito de exibir o filme, de acordo com reportagens da imprensa especializada.

Nas palavras de Berry, “entendo o que é ser marginalizada, como mulher negra, e a ira, ressentimento medo e frustração que vêm de tudo isso. Se eu pudesse colocar todas essas coisas no filme, todas as coisas que conheço tão bem, eu sabia que seria capaz de criar uma personagem não só real como, além disso, capaz de ecoar em mulheres de raças diferentes”.

É verdade que a simples presença de Jackie na tela oferece uma narrativa de contraponto ao heroísmo centrado nos homens da maioria dos filmes de boxe. Mas a ênfase do filme na maternidade também oferece a Berry uma oportunidade de fazer mais uma declaração em Hollywood: o arco de redenção de Jackie remodela ativamente as histórias de suas personagens mais conhecidas, bem como a de algumas de suas personagens mais recentes em filmes menos assistidos.

Mãe viciada em drogas: “O Destino de uma Vida”. Mãe de luto: “A Última Ceia”. Astronauta que engravida misteriosamente e luta por salvar seu filho de espécie híbrida: a série de TV “Extant”. Garçonete transformada em vingadora depois que seu filho é sequestrado: “O Sequestro”. Mãe postiça de oito crianças durante os tumultos raciais em Los Angeles: “Kings: Los Angeles em Chamas”.

E estou citando só os títulos de que me lembro. O que distingue Jackie, claro, é que ela é uma lutadora literalmente. E para Berry, esse fato, quando acoplado ao impulso materno de sua personagem, torna o papel mais nuançado e novo para ela.

A atriz começou nossa conversa preocupada com o horário de mandar seus filhos para a escola, e explicou mais tarde que Jackie “faz o impensável, que é deixar seu filho sem motivo, mas emocionalmente ela era incapaz de ficar e ser mãe”.

Esse ato acompanha Jackie ao ringue, e chega a fazê-la perder uma disputa de título quando ela pede para deixar a jaula. Na explicação de Berry, Jackie estava se sentindo tão ferida que “o medo e a culpa a tomaram em sua luta seguinte, e ela não suportou. Não conseguiu encarar. Deixou de ser a lutadora que um dia tinha sido”.

A fim de se preparar para o papel, Berry não só assistiu a lutas (ela sempre foi fã de boxe) como conversou com lutadoras de MMA e perguntou por que elas haviam escolhido o esporte. “O que vou dizer não se aplica a todas elas, mas minha pesquisa me ensinou que os homens e as mulheres lutam por motivos muito diferentes”, afirmou Berry.

“Muitas vezes, os homens lutam como carreira, ou para tomar conta de suas famílias, sustentar a casa, deixar a pobreza para trás. Já as mulheres muitas vezes lutam para recuperar sua voz”. Ela acrescentou que “porque muitas delas sofreram abusos, de diversas maneiras, em seus anos mais jovens, lutar se tornou a única forma de reconquistar seu senso de dignidade, poder e segurança no mundo”.

Quando perguntei a Berry se sua decisão de dirigir era parte de sua jornada para ganhar controle sobre a forma pela qual ela é apresentada na tela, em lugar de ter de se sujeitar aos caprichos de um setor que até recentemente relegava as mulheres de meia-idade, especialmente as mulheres negras, a papéis coadjuvantes, ela fez uma pausa.

Perguntei se ela precisava de tempo para pensar sobre as reviravoltas de uma carreira que a levou a ser tanto a primeira atriz negra a conquistar um Oscar como melhor atriz (por “A Última Ceia”, em 2000) quanto a receber um Razzie como pior atriz (por “Mulher-Gato”, em 2004).

“Todos somos programados a ver determinadas versões de quem somos, mas não programados por nós mesmos”, disse Berry. “É desse senso de poder que estou falando. Sinto-me poderosa só por poder fazer o que faço, e colocar minha voz no mundo de alguma maneira, e expor minhas sensibilidades como mulher negra”. Duas cenas do filme se destacam porque nelas Berry não só referencia seus filmes anteriores como revisa claramente o olhar masculino tradicional.

No começo, uma discussão entre Jackie e seu parceiro e empresário Desi (Adan Canto) os leva a fazer sexo, e a intensidade e vigor da cena me lembram do momento em que o personagem dela em “A Última Ceia”, Leticia Musgrove, e Hank Grotowski (Billy Bob Thornton) se engajam em uma forma igualmente desesperada e violenta de conexão. Em “Ferida” a cena não tem posição tão decisiva no filme, e é cortada e interrompida pela porção da história que trata do retorno do filho de Jackie.

Mais tarde, podemos contrastar o encontro entre Jackie e Desi ao contato mais carinhoso entre ela e sua nova treinadora, Bobbi “Buddhakan” Berroa (Sheila Atim). Berry não só instrui a câmera a se deter nas carícias trocadas pelas duas mulheres como mostra que a paixão é catártica e um momento de cura para ambas.

Para personificar as metamorfoses de Jackie, Berry se transformou completamente. Os olhos dela viviam inchados, seus lábios sangrando, ela vestia calças largas e sem uma gota de glamour.

Quando eu disse a Berry que a aparência de sua personagem me lembrava o Brad Pitt desfigurado no final de “Clube da Luta”, ela reagiu vigorosamente, e percebi que meu olhar tinha sido distorcido por ideias preconcebidas sobre ela e sua carreira. Em outras palavras, ela queria interpretar Jackie porque via partes de si mesma –de seu passado e de seu presente– na história, bem como um reflexo de sua luta por mais.

“Essa é outra batalha que travei por toda a vida: a de que, porque tenho determinada aparência, fui poupada de todas as dificuldades. Passei por perdas, dores e muito sofrimento em minha vida. Sofri abusos a vida toda”, ela relembrou, em referência a, entre outras coisas, violência doméstica em relacionamentos, assunto de que Berry já falou no passado. “Fico realmente frustrada quando as pessoas pensam que, porque tenho uma certa aparência, não passei por experiências desse tipo na vida real, porque passei por muitos delas”.

Ela acrescentou, além disso, que “isso não me livrou de qualquer sofrimento, dor, momento de tristeza ou de medo, pode acreditar”. Atim disse acreditar que “a rica experiência de Halle como atriz foi instrumental em alimentar seus instintos como diretora”. Mas Atim acrescentou também que, em última análise, a experiência dela “sobre como contar uma história era igualmente importante”.

O resultado é um retrato da feminilidade negra que é a um só tempo expansivo e enriquecedor –para Jackie, para Berry e para a audiência igualmente. “Não vi uma mulher negra retratada dessa maneira em um filme”, disse Berry. “E sou de Cleveland, Ohio. Sou o sal da terra. É um mundo que conheço e é intrínseco a quem eu sou”.

Em outras palavras, um filme pelo qual valia apenas lutar. “Se pretendo contar uma história, quero fazê-lo de um ponto de vista que eu conheça”, ela disse. “Achei que essa era uma ótima maneira de começar”.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem