Em 2020, mulheres realizaram o melhor filme, a melhor série e o melhor álbum do ano
Três mulheres realizaram o melhor filme, a melhor série televisiva e o melhor álbum de 2020, segundo um levantamento agregado de 427 rankings feitos por críticos especializados.
Principal vencedor do Festival de Veneza e do Festival de Toronto, o filme "Nomadland" surge em primeiro lugar em 20 listas de melhores do ano e em segundo em outras 12, segundo o site especializado Metacritic, que atualiza constantemente o ranking.
Favorito ao Oscar, o longa escrito e dirigido pela cineasta chinesa Chloé Zhao retrata uma trabalhadora nômade que percorre os Estados Unidos em meio à decadência socioeconômica de seu entorno.
Três dos 4 melhores filmes de 2020 foram dirigidos por mulheres: "Nomadland" (1º), "First Cow" (2º) e "Never Rarely Sometimes Always" (4º).
Para os críticos, a melhor série televisiva de 2020 foi "I May Destroy You", estrelada, escrita e codirigida pela britânica Michaela Coel. A obra semiautobiográfica transcorre em torno do um estupro de uma artista negra no Reino Unido.
Essa produção lidera 28 listas de melhores do ano —a título de comparação, "Better Call Saul", que aparece em segundo lugar no agregado, lidera seis rankings.
Na seara musical, o álbum experimental de Fiona Apple, "Fetch The Bolt Cutters", liderou 23 listas de melhores do ano. O trabalho da artista americana foi gravado em casa, sem edição, repleto de ruídos, latidos e crueza. Três dos 4 melhores álbuns de 2020 foram realizados por mulheres: Fiona Apple (1º), Phoebe Bridgers (2º) e Taylor Swift (4º).
Por fim, vale mencionar ainda que o melhor jogo do ano para os críticos especializados, o pós-apocalíptico "The Last of Us 2", é protagonizado por uma personagem feminina (Ellie) e teve duas mulheres em cargos-chave: Halley Gross (corroteirista) e Emilia Schatz (cochefe de design).
CINEMA: 'NOMADLAND', DE CHLOÉ ZHAO
A obra escrita e dirigida pela chinesa Chloé Zhao (de "Domando o Destino") tem como protagonista uma trabalhadora nômade interpretada por Frances McDormand, vencedora do Oscar por "Fargo" e "Três Anúncios para um Crime". Ela percorre o país numa van depois do colapso econômico da cidade onde morava, na zona rural do Estado de Nevada.
O longa, baseado em um livro-reportagem homônimo de Jessica Bruder, tem como pano de fundo grupos nômades que lidam com condições bastante precárias de vida nos EUA, mas que são contrapostas pela solidariedade, a convivência e a segurança do ambiente coletivo.
Há no filme diversos intérpretes que não são atores profissionais, mas trabalhadores nômades que interpretam a si mesmos. "É extraordinário como uma obra como 'Nomadland' pode ser um espelho para a sociedade e refletir de volta para o público a luz de suas próprias vidas", escreve Fionnuala Halligan, da Screen Daily.
Para Caryn James, da BBC, "essas histórias são apresentadas sem sentimentalismo ou condescendência. É uma escolha admirável, mas que ocasionalmente faz 'Nomadland' parecer um pouco clínico demais. Mesmo assim, o desempenho dominante e profundamente empático de McDormand mantém o filme coeso. Ela é tão convincente e afetada que parece que ser um outro ator não profissional que Zhao magicamente torna natural na tela".
Segundo o ranking agregado de top 10 do site Metacritic, 3 dos 5 melhores filmes do ano foram dirigidos por mulheres e os outros dois, por cineastas negros.
MÚSICA: 'FETCH THE BOLT CUTTERS', DE FIONA APPLE
Com cinco álbuns em sua carreira, Fiona Apple está farta. "Me chute embaixo da mesa o quanto quiser / eu não vou calar a boca", ela diz em "Under The Table", quarta música de seu álbum "Fetch The Bolt Cutters", o mais elogiado no ano pelos críticos especializados. Em seguida, na faixa "Heavy Balloon", ela acrescenta: "Estou engolindo isso há tanto tempo / que estou explodindo nas costuras."
As canções de "Fetch The Bolt Cutters" (algo como Pegue os Alicates, em tradução livre) também parecem prestes a estourar, mudando abruptamente as marcações de compasso e provocando notas além da zona de conforto. Parece que todo o álbum está permanentemente em perigo de desmoronar, mas é isso que o torna tão atraente. Você nunca sabe o que está por vir.
Os vocais de Apple foram gravados em sua casa sem nenhuma edição, então você ouve de tudo, desde o ranger das cadeiras até o latido de seus cachorros. Isso dá ao álbum uma qualidade crua e sem filtros enquanto ela traça seu passado, desde a amiga de escola que disse que ela "tinha potencial" ("Shameika") até fazer amizade com as amantes de suas parceiras ("Ladies").
O abuso de mulheres por homens é um tema central. Uma música, "Relay", foi escrita em fúria depois que Brett Kavanaugh foi nomeado para a Suprema Corte dos Estados Unidos, apesar de várias acusações de agressão sexual (as quais ele nega). Sua letra alude ao ciclo autoperpetuante de abusos: "O mal é um esporte de revezamento / Quando aquele que queima / Vira para passar a tocha."
"Desta vez, há uma ferocidade mais indomável na voz da Apple, enquanto ela conta histórias sobre feminismo, parceiros abusivos, sacrifícios de amor e jantares nos quais ela não ficará quieta. Sons não refinados gravados em sua casa em Los Angeles contribuem para uma experiência de audição visceral", escreve Charlotte Krol, da revista New Music Express (NME).
"'Fetch the Bolt Cutters' é ousado de uma nova maneira, embaralhando e quebrando as estruturas da música pop que a fundamentaram em algum momento. (...) Estou chocado com esse álbum. Eu ouço liberdade nele. Essas músicas fazem algumas curvas fechadas de tirar o fôlego. (...) Não é apenas a fabricação selvagem de cada música. É também que ela não tem medo do que está fazendo: com sons, com estruturas, com a expectativa das pessoas", afirmam críticos do jornal The New York Times numa roda de conversa sobre o álbum.
SÉRIE: 'I MAY DESTROY YOU', DE MICHAELA COEL
A série mais elogiada do ano, "I May Destroy You", foi escrita, protagonizada e codirigida por Michaela Coel (criadora da também elogiada "Chewing Gum").
O drama de 12 episódios (disponível no Brasil na HBO Go) mapeia as consequências de um crime sexual que ocorre após a protagonista Arabella, que também é uma artista de sucesso, ter sido dopada sem consentimento. A própria Coel já havia revelado publicamente ter sido vítima de estupro.
Um dos pontos altos da série é mostrar quão permeadas estão as mais variadas violações na vida das mulheres. O estupro de Arabella não é tratado como um incidente isolado: há uma série de outras violações "não consensuais", incluindo mais uma de cunho sexual sofrida pela própria Arabella, na qual uma homem tira a camisinha no meio do sexo sem avisar (o que é considerado estupro no Reino Unido).
A complexidade dos personagens, repletos de camadas e contradições, é outra marca da série.
"(É numa) zona cinzenta e com as dúvidas de sua personagem e dos amigos que a rodeiam que ela mostra por que esse tipo de questão —foi estupro?— ainda vem tantas vezes acompanhada de um ponto de interrogação, e não de exclamação, apesar de ser um tipo de crime tão discutido", escreve Luciana Coelho, colunista da Folha.
A série vai além dessa temática e questiona implicitamente, por exemplo, como a personalidade pode realmente ser construída, especialmente quando se alcançou algum tipo de projeção pública. E qual é o custo para manter essa aparência.
Isso é exemplificado por um momento surrealmente sombrio, quando Arabella, tonta e cambaleante, volta para casa na manhã seguinte ao estupro e é abordada por um fã em busca de uma selfie. Mesmo quase sem conseguir levantar, ela instintivamente muda seu semblante para uma esperada postura sorridente.
"É, em resumo, um feito extraordinário e de tirar o fôlego sem uma peça falsa nele, repleto de humor, ideias, talento e caráter para queimar a cada reviravolta perfeitamente planejada", afirma Lucy Mangan, do jornal The Guardian.
Para Isobel Lewis, do jornal The Independent, "jamais um programa de TV mostrou as complexidades da agressão sexual e como ela afeta os sobreviventes, seus amigos e suas comunidades como este drama difícil, angustiante e hilário".
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