Diretora Alice Wu em San Francisco

Diretora Alice Wu em San Francisco Damien Maloney-18.abr.2020/The New York Times

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Robert Ito

Quando Alice Wu escreveu e dirigiu em 2005 "Livrando a Cara", seu filme de estreia, ela sabia que não seria uma comédia romântica típica de Hollywood. Exceto por Joan Chen, estrela de "O Último Imperador", o restante do elenco era formado por atores desconhecidos.

Boa parte do filme teve locações no Queens, Nova York, e nem mesmo nas partes mais bonitinhas do distrito; e a história se concentrava no desenvolvimento de um romance lésbico entre duas mulheres americanas de origem chinesa, ambas ambiciosas. "Eu estava tentando fazer a maior comédia romântica que podia com um orçamento minúsculo, usando atores de etnia asiática e metade falado em mandarim", ela disse.

Mesmo assim, “Livrando a Cara”, que saiu no intervalo entre os sucessos "O Clube da Felicidade e da Sorte" (1993) e "Podres de Ricos" (2018), teve efeito desproporcional sobre os cineastas americanos de origem asiática e sobre o cinema. No ano passado, “Livrando a Cara” foi apontado como um dos 20 melhores filmes realizados por americanos de origem asiática, por um grupo de críticos e curadores formado pelo jornal The Los Angeles Times.

A diretora Alice Wu em San Francisco
A diretora Alice Wu em San Francisco - Damien Maloney-18.abr.2020/The New York Times

Stephen Gong, diretor-executivo do Center for Asian American Media de San Francisco (que organiza o festival de cinema CAAMFest) foi além, e incluiu o filme na sua lista de dez melhores, em companhia de “Chan is Missing”, filme independente realizado por Wayne Wang em 1982, e de "Better Luck Tomorrow", de Justin Lin. "É um filme de estreia brilhante", disse Gong.

Nos últimos dias, "Você Nem Imagina", um filme destinado a jovens adultos, escrito e dirigido por Wu, estreou na Netflix. No filme, Ellie Chu (Leah Lewis), uma inteligente e introvertida adolescente americana de ascendência chinesa, ajuda Paul (Daniel Diemer), um atleta gentil mas não muito inteligente, a seduzir Aster (Alexxis Lemire), a moça linda com quem ambos sonham. "No momento em que li que ela escolhia a menina, eu logo pensei que tinha de fazer esse filme", disse Lewis.

O filme chega em um ambiente muito diferente para os cineastas e roteiristas americanos de origem asiática –um ambiente que “Livrando a Cara”, de muitas maneiras, ajudou a criar. O novo trabalho também é o primeiro filme dirigido por Wu desde sua estreia 15 anos atrás.

"Eu não entrei no ramo pensando que queria ser cineasta", disse Wu, que foi gerente de programas na Microsoft e, quando morava em Seattle, um dia decidiu fazer por diversão um curso noturno de redação de cinema. "E quando 'Livrando a Cara' acabou por ser produzido, contra todas as expectativas, passei por um momento de perplexidade, de não saber o que fazer."

Nos anos intervenientes, o filme dela influenciou toda uma geração de atrizes e cineastas de origem asiática. Awkwafina ("Podres de Ricos") tinha um cartaz do filme em seu quarto e o descreveu como o primeiro filme que a afetou em sua condição de americana de origem asiática, e especialmente como uma mulher de origem asiática nascida e criada em Flushing, Queens.

A diretora Lulu Wang também é fã, e se admira por o filme, mais ou menos como seu “The Farewell”, um modesto sucesso em 2019, ter sido realizado., “Tínhamos Ang Lee, e aí veio Alice, mas aqueles de nós que estavam tentando expandir as fronteiras eram poucos e seletos”, ela disse. “E Alice chegou lá antes de todos nós”.

“Livrando a Cara” contava a história de Wil (Wilhelmina), uma jovem cirurgiã americana de origem chinesa, interpretada por Michelle Krusiec; de sua namorada, a aspirante a bailarina Vivian (Lynn Chen, em seu primeiro papel principal); e da mãe de Wil, Joan Chen, que se vê grávida aos 48 anos. “Eu nunca tinha interpretado uma personagem como aquela”, disse Chen. “Foi muito delicioso”.

Mas quando Wu começou a se reunir com produtores e executivos de estúdios, muitos deles queriam que ela transformasse os personagens principais em brancos. Isso aconteceu mais de uma década antes que movimentos como #OscarsSoWhite e #StarringJohnCho começassem a criticar nominalmente cineastas e filmes que não promovem a diversidade. Os executivos sugeriram que ela talvez pudesse transformar os personagens principais em heterossexuais. E queriam que parte muito menor do diálogo fosse em mandarim.

Wu rejeitou tudo isso. “Eu com certeza sei escrever coisas sobre brancos”, ela disse. “Vivo em um mundo no qual praticamente todas as pessoas com quem interajo são brancas, e por isso sei escrever esse personagem. Mas essas pessoas seriam capazes de escrever um personagem como eu? Não estou segura disso”.

O filme, produzido por Teddy Zee e pelo ator Will Smith e distribuído pela Sony Pictures Classics, estreou no Festival Internacional de Cinema de Toronto em setembro de 2004, e foi exibido no festival Sundance em janeiro do ano seguinte. Meses depois, estreou em San Francisco no Festival Internacional de Cinema Asiático-Americano (agora CAAMFest).

“Jamais esquecerei de estar em Castro, em meio a uma grande audiência de homens gays vestindo roupas de couro, sentados ao lado de velhos imigrantes chineses que mal conseguiam falar inglês”, ela disse. “Isso é algo que vou levar comigo para o túmulo como um dos melhores sentimentos da minha vida”.

O filme foi indicado para o GLAAD Media Award em 2006, pela GLAAD, uma associação de defesa dos direitos LGBTQ, e desde então passou a fazer parte frequentemente de listas como “melhores beijos lésbicos do cinema” e “18 filmes lésbicos maravilhosos em que ninguém morre”. Também é exibido frequentemente em universidades e em festivais de cinema que destacam trabalhos de americanos de origem asiática.

O filme ganhou um prêmio dos espectadores no Golden Horse Awards, o equivalente taiwanês do Oscar, para grande surpresa de Wu, dado o foco na sexualidade feminina e que, diferentemente de boa parte dos demais concorrentes, “Livrando a Cara” tem boa parte de seu diálogo em inglês, ou em mandarim com sotaque americano. "Eu me preocupava com não poder voltar a jantar em um restaurante chinês, depois do filme", ela disse. "Somos um povo muito, muito crítico."

Depois de “Livrando a Cara”, Wu trabalhou em outros projetos e chegou a vender uma ideia de série à rede de televisão ABC. "Ela não é a espécie de pessoa a quem você pode pedir para escrever alguns episódios de ‘Modern Family’, disse Zee, acrescentando: “Ela não gosta de trabalhar por encomenda”.

Pouco depois, Wu deixou o cinema e se mudou para San Jose, Califórnia, para cuidar da mãe doente. Wu aproveitou o dinheiro que ganhou na Microsoft e com “Livrando a Cara”, fez investimentos inteligentes e conseguiu viver por diversos anos dos juros e do rendimento desses investimentos. “Por sorte, não preciso de muito dinheiro”, ela disse.

Wu não falou muito sobre nada disso a outras pessoas. Quando lhes perguntam se sabem o que ela fez durante todos esses anos, seus amigos da época de “Livrando a Cara” mal fazem ideia. “Alice sempre foi muito resguardada sobre o que ela faz, como carreira”, disse Lynn Chen. “Ela sempre prefere saber o que está acontecendo na vida do interlocutor”.

Três anos atrás, depois que sua mãe melhorou e ela se viu “solteira de novo”, Wu voltou a escrever. “Havia todo aquele material jorrando de mim”, ela disse. Mas quando tentou visualizar um segundo filme, algo que ela mesma dirigisse, Wu perdeu o ímpeto.

Por isso, fez o que qualquer escritor sensato que esteja sofrendo de um bloqueio criativo faz: escreveu um cheque de US$ 1 mil para a National Rifle Association, uma causa que ela com certeza não apoia. “Entreguei o cheque a uma de minhas melhores amigas, CJ, que é bem linha dura, e lhe disse que, se eu não completasse um primeiro rascunho do roteiro em breve, ela deveria mandar o cheque para eles”.

Wu escolheu como local de sua história a cidadezinha imaginária de Squahamish, no estado de Washington. "Fiz buscas intermináveis sobre Trump no Google e decidi que a história se passaria em uma pequena cidade rural. Minha esperança era que as pessoas dos estados conservadores assistissem ao filme e que ele as fizesse pensar sobre aquela família imigrante, ou sobre aquele garoto que é meio diferente. Ou talvez que elas pensassem em sair do armário."

Wu escolheu trabalhar com a Netflix tendo a mesma audiência em mente. “Uma pessoa com essa não irá ao Landmark Theater para assistir a esse filme”, ela disse. Muita coisa mudou desde que “Livrando a Cara” passou pela primeira vez em Castro. Hoje, atrizes americanas e canadenses de origem asiática, como Sandra Oh e Awkwafina, Ali Wong e Lana Condor, estrelam em dramas, comédias românticas e séries de TV. Diretoras de origem asiática, como Grace Lee, Karyn Kusama, Deborah Chow e Cathy Yan, estão se tornando menos raras, embora continuem a ser uma categoria muito pouco representada.

O processo demorou muito. “Na época, eu pensava que isso se tornaria corriqueiro”, disse Krusiec, que interpreta a lenda do cinema Anna May Wong, em “Hollywood”, série de Ryan Murphy para a Netflix. “A cada ano, viriam três ou quatro filmes como aquele, era o que eu achava. Eu ainda era inocente demais para entender o racismo do sistema ou o quanto aquele filme era especial”.

Lynn Chen, cuja estreia como diretora, "I Will Make You Mine", deveria ter acontecido no festival South by Southwest este ano, concorda. “Desde então, tive a oportunidade de trabalhar com diversas diretoras de origem asiática, mas o triste é que ainda é possível contá-las nos dedos das mãos”.

Wu credita os diretores americanos de origem asiática que a precederam pela oportunidade de realizar “Livrando a Cara”. Ela disse que "e, além disso, estou muito orgulhosa por Michelle e Lynn terem se tornado diretoras. E Joan, claro, já era diretora. Elas são como que minha família. Não assumo crédito por nada disso, mas adoro ter sido parte de sua jornada narrativa, de alguma forma".

The New York Times

Tradução de Paulo Migliacci

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