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Adam Driver diz que profissão de ator é vulnerável e evita se assistir nos filmes

Com carreira em ascensão, artista estrela 'História de um Casamento' e 'Star Wars'

O ator Adam Driver

O ator Adam Driver Erik Tanner/The New York Times

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Kyle Buchanan

​Adam Driver tem um rosto de esfinge, em repouso. Não digo isso por conta de seus traços incomuns mas memoráveis, ainda que o nariz longo, lábios grossos e coleção de marcas e sardas certamente ajudem a lhe dar feições desproporcionais.

O que quero dizer, no entanto, é que ele tem modos tão resolutos que, quando alguma emoção consegue escapar –quer seja por meio de um brilho no olhar ou de ondulações imprevisíveis em sua voz–, a transgressão apanha de surpresa a pessoa que esteja olhando para ele. Isso continua válido por mais vezes que o espectador o assista, e em 2019 ele com certeza foi muito assistido.

No segundo trimestre, ele estava em cartaz simultaneamente em “Burn This”, na Broadway, e em “Os Mortos Não Morrem”, filme de zumbis dirigido por Jim Jarmusch, e três outros filmes protagonizados por ele estrearam nos últimos dois meses: “O Relatório”, em que ele interpreta um funcionário do Senado que investiga o uso de tortura pelo governo; “Star Wars: A Ascensão Skywalker”, em sua terceira e última aparição como o atormentado Kylo Ren; e “História de um Casamento”, no qual ele faz um diretor de teatro envolvido em uma disputa pela guarda do filho com a mulher de quem está se separando.

 

Foi durante a exibição de um vídeo deste último filme que pude assistir Driver se assistindo, durante a cerimônia de entrega dos Gotham Awards, no começo de dezembro em Nova York; ele era um dos candidatos ao prêmio de melhor ator.

Ver seu próprio trabalho não está entre as atividades favoritas de Driver, o ator havia me dito horas antes. Ele inevitavelmente se deixa consumir pelo que entende como erros em seu trabalho, mesmo que no fundo saiba que, no trabalho de qualquer pessoa, são as imperfeições que ele considera como mais fascinantes.

Driver, 36, até agora evitou assistir a quase todos os seus trabalhos nas telas, seja em “Girls”, a série da HBO que lhe deu seu primeiro papel de sucesso, ou nos filmes que rodou com diretores prestigiosos como Martin Scorsese, Steven Spielberg e Spike Lee.

“História de um Casamento” se enquadra nesta última categoria, e, uma semana depois da cerimônia do Gotham, surgiu a informação de que Driver havia abandonado uma entrevista à rádio pública NPR porque um engenheiro mostrou um clipe de seu desempenho no filme.

“Se ele sente que a experiência vai ser pesada demais, eu compreendo”, disse o diretor e roteirista de “História de um Casamento”, Noah Baumbach, mais tarde. “Não assisto aos meus filmes depois que os termino, como ele”.

Na entrega do Gotham, quando Jennifer Lopez anunciou os candidatos a melhor ator, o programa mostrou uma cena de “História de um Casamento” na qual Driver enfim começa a encarar com seriedade a possibilidade de perder a guarda de seu filho. “Ele precisa saber que lutei por ele!”, diz o personagem, muito inquieto. Diante de mim, sentado à mesa com seus colegas do filme, Driver assistiu à cena exibindo uma imobilidade impossível, com aquela expressão de esfinge no rosto.

Ele estava feliz com o que viu de seu trabalho, ou será que ficou imaginando de que forma as escolhas que fez resultaram em tantos elogios na temporada de premiações? Não houve tempo para ponderar a questão longamente: momentos mais tarde, Lopez anunciou o nome dele como vencedor.

Horas antes, no Greenwich Hotel, enquanto a neve matutina começava a cair do lado de fora, Driver se serviu de café e avaliou os meses de possíveis aparições em cerimônias de premiação por seu trabalho em “História de um Casamento”. (Ele foi indicado para o prêmio de melhor ator no Globo de Ouro e no Screen Actors Guild Awards e deve estar entre os indicados ao Oscar, quando os candidatos forem anunciados em 13 de janeiro.)

“Atuar sempre está repleto dessas estranhas justaposições”, ele disse. “Não é algo glamoroso quando você está fazendo, mas é vendido como se fosse”.

No ano passado, ele foi indicado pela primeira vez ao Oscar, por seu papel em “Infiltrado na Klan”, de Lee, no qual interpretou um detetive judeu infiltrado na Klu Klux Klan. “É incrivelmente lisonjeiro”, disse Driver sobre a indicação ao Oscar, acrescentando que “não tenho controle algum sobre isso”.

A única maneira que ele encontrou de metabolizar esse tipo de reconhecimento foi pensar em sua indicação como resultado de um esforço coletivo. “Conheço muita gente que trabalha com muito afinco e quase nunca consegue esse reconhecimento, e por isso não sei como processar isso, ou que significado conferir a isso”, ele disse.

Em pessoa, Driver tem o comportamento polido mais firme do fuzileiro naval que foi antes de estudar na escola Juilliard, e não há como fazê-lo dizer mais do que pretende. Em dado instante, ao concluir um pensamento, Driver me informou: “Esse é o fim da sentença”. O único momento em que ele hesitou em uma resposta ou sorriu com embaraço foi ao falarmos sobre a cerimônia de premiação da qual participaria naquela noite.

“Acredito que todo mundo, em qualquer trabalho, deseje reconhecimento”, ele terminou por dizer, ainda que tenha ponderado se, no caso dos atores, assumir esse desejo não representa um risco, porque eles não têm onde se esconder. “Não existe separação com relação àquilo que eu sou”, disse Driver. “Não tenho um instrumento. Não toco violoncelo. Você mesmo é o instrumento, e isso de alguma forma o torna mais vulnerável”.

Pelo menos ele fará a jornada com Baumbach, o cineasta que se tornou seu colaborador mais frequente e confiável. Os dois trabalham juntos desde “Frances Ha”, em 2012, quando Baumbach se encantou com a forma pela qual Driver, escalado para o papel de um hipster que usa cardigãs e um chapéu, conseguia instilar vida inesperada nos diálogos.

“Há uma citação excelente sobre poesia, a de que ela devolve seus pensamentos a você com uma dose adicional de majestade”, disse Baumbach. “Trabalhar com Adam é assim: tanto surpreendente quanto familiar”.

Os dois continuaram a colaborar, em “Enquanto Somos Jovens” e “Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe”, antes de Driver encaminhar um convite ao cineasta: o que ele achava de adaptar para o cinema o musical “Company”, de Stephen Sondheim, encenado em 1970? Baumbach ficou intrigado e, embora ele e Driver jamais tenham conseguido encontrar um formato para a adaptação, muitas das coisas que os interessavam terminaram usadas em “História de um Casamento”, entre as quais uma canção de Sondheim que Driver canta na íntegra.

Embora Bobby, o protagonista solteiro de “Company”, à primeira vista pareça ter pouco em comum com Charlie, o sujeito em processo de divórcio que é a figura central de “História de um Casamento”, Driver descobriu nos dois homens uma teimosa falta de disposição a encarar seus problemas.

No começo de “História de um Casamento”, a mulher de Charlie, Nicole (Scarlett Johansson), já não quer viver com ele e está preparando sua mudança, mas Charlie demora muito tempo a perceber que as coisas jamais voltarão ao normal, e que ele agora tem de arcar com uma perda significativa.

“Ele não consegue nomear a coisa, não consegue identificá-la”, disse Driver. “Para processar a coisa e sofrer, ele precisa de um caminho abstrato”.

Isso envolve o percurso indireto de uma epifania via Sondheim, ainda que também haja o recurso a um método mais usual, o de uma briga especialmente brutal e aos gritos. Pela maior parte da história, vemos Nicole e Charlie conversando de modo furtivo, contido, sobre as coisas que realmente os incomodam,  –promessas violadas, uma infidelidade, o egoísmo cego de um dos parceiros–, e usando seus advogados para a parte pesada do confronto.

Mas já no final do filme, quando os dois estão sozinhos no apartamento de Charlie e retomam a discussão usual, a briga vai se tornando mais dura e cruel, até que as barreiras se rompem e Charlie grita coisas tão espantosamente horrendas para sua ex-mulher que ele cai de joelhos, abalado pela fúria de seus sentimentos. Eu também fiquei chocado. Na cena, Driver chega a um estado de raiva tão apoplética que parece romper os limites do filme. Seu rosto plácido, agora rubro e retorcido de ira, se contorceu a tal ponto que me senti compelido a desviar o olhar.

Driver fala facilmente sobre a maneira pela qual o personagem chega a esse momento, mas se mostra menos disposto a discutir sobre como ele se conduz a um lugar tão íntimo, como ator. “Nós dissemos o que havia a dizer na coisa”, ele disse, significando tudo que está na tela. “O que eu poderia acrescentar que explique melhor? Coisa alguma”. Ele ri. Foi o fim daquela sentença.

Quando Jennifer Lopez anunciou que Driver receberia o Gotham como melhor ator, ele ficou boquiaberto por um milissegundo, e depois se levantou, abotoando seu paletó, e caminhou para o palco.
“Isso significa muito para mim”, disse Driver, antes de agradecer sua mulher, Joanne Tucker, Baumbach, e Laura Dern, uma das estrelas de “História de um Casamento”, que havia sido homenageada durante a noitada.

Ele aproveitou o discurso para elogiar o trabalho de atrizes que interpretaram papéis secundários, como Julie Hagerty e Martha Kelly, por acrescentarem textura muito necessária ao filme mas sem fazer papéis que justifiquem indicá-las para prêmios, ou mesmo convidá-las para a cerimônia.

Pouco mais tarde, “História de um Casamento” conquistou o prêmio de melhor filme, e Baumbach subiu ao palco, seguido por Dern e Driver. Em certo momento do discurso de agradecimento do diretor, ele olhou em volta, tentando descobrir o que dizer a seguir, e olhou na direção de seu protagonista. Driver estava encostado na parede, com as mãos nos bolsos, e claramente não estava com pressa de substituir Baumbach no microfone. Mas parecia feliz, ainda assim.

“Por que você está aí encostado na parede?”, Baumbach perguntou. A esfinge se limitou a sorrir.
 

The New York Times

 Tradução de Paulo Migliacci

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