Cinema e Séries

Atriz de 'Watchmen' diz que pessoas agem de maneira primitiva quando não mostram o rosto

Jean Smart, a Laurie Blake, afirma que série ajuda pessoas a refletirem

Cena da série Watchmen, da HBO
Cena da série Watchmen, da HBO - Divulgação
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São Paulo

Inspirada na Graphic Novel de Alan Moore e Dave Gibbons, "Watchmen" estreou na plataforma de streaming da HBO há pouco mais de um mês e, a cada episódio, vem conquistando fãs por todo o mundo. Com uma história centrada em super-heróis que são tratados como criminosos, a série acompanha Angela Abar (Regina King), uma detetive que investiga o assassinato de um colega.

O capítulo inicial da série aborda o massacre que ocorreu em uma comunidade negra na cidade de Tulsa, Oklahoma, no dia 31 de maio de 1921. Naquela data, uma multidão de brancos enraivecidos e inconformados com a prosperidade da comunidade, chamada de Wall Street Negra, invadiu a cidade ateando fogo em casas e em estabelecimentos comerciais. A violência se estendeu por 18 horas, deixando mais de 10 mil desabrigados e, segundo alguns historiadores, quase 300 mortos. 

Na série, o ator Tim Blake Nelson, que interpreta Looking Glass, é um dos responsáveis por patrulhar as ruas de Tulsa e executar interrogatórios especiais. Ele, como os demais integrantes da força policial da cidade, usam máscaras para proteger suas identidades e investigar A Sétima Kavalaria, organização supremacista branca que foi inspirada no diário de Rorschach.

Em conversa com a HBO, à qual o F5 teve acesso com exclusividade, o ator afirma que "o racismo não vai desaparecer até que todos sejamos um, e com sorte a humanidade persistirá por tempo suficiente para que isso aconteça".

"A série está examinando não só o que acontece quando os personagens se escondem por trás de máscaras físicas reais, mas a maneira pela qual usamos máscaras, a maneira como tratamos a pessoa de quem estamos comprando um refrigerante, e lhes mostramos um rosto amistoso, mesmo que estejamos passando por uma manhã horrível", diz Nelson. "E aí, elegemos líderes que nos ocultam deliberadamente o que são, por trás de suas máscaras [...] Os seres humanos usam máscaras para ganhar poder", completa. 

Intérprete de Laurie Blake, Jean Smart diz que séries como "Watchmen" ajudam as pessoas a refletirem sobre como os computadores e os celulares são "máscaras modernas", por trás das quais as pessoas se sentem anônimas e com poder para despejar toda a sua raiva. "Quando não é preciso encarar os seres humanos, as pessoas agem de maneiras primitivas", diz ela, fazendo um paralelo com os dias atuais.

Confira trechos da entrevista com Tim Blake Nelson e Jean Smart.

Tim, você é de Tulsa. Isso foi um dos motivos para a série o atrair?
Tim Blake Nelson - Diria que foi uma influência terciária. Primeiro e, acima de tudo, foi Damon Lindelof, e em segundo lugar Damon Lindelof fazendo “Watchmen”, e em terceiro lugar o personagem. Assim, eu diria na verdade que o personagem foi a influência terciária, e Tulsa veio em quarto lugar.

Quantas pessoas de fora de Tulsa conhecem a história da cidade e do massacre?
Tim Blake Nelson - Bem, o centenário está chegando, uma data ignominiosa, e acredito que as pessoas saberão a respeito, como resultado disso. Sei que existe um documentário em produção, e a cidade está abraçando a ideia de encarar seu passado, com a aproximação do centenário. A série expõe o fato pelo que realmente foi, um dos piores, se não o pior, massacre racial na história dos Estados Unidos.
Jean Smart - Realmente, eu fiquei surpresa por isso [massacre] não ser mais conhecido. Se a cidade fosse maior, ou ficasse em uma das costas, algo assim, certamente o que aconteceu seria mais conhecido.
Tim Blake Nelson Brian Stevenson, do museu associado à Iniciativa Justiça Igual, em Montgomery, tem uma coleção de placas com os nomes de lugares em que aconteceram os linchamentos nos Estados Unidos. Os membros das comunidades em que eles aconteceram podem retirar as placas no museu. Se eles propuserem colocar as placas em sua comunidade, são encorajados a fazê-lo. Mas restam muitas placas no museu [...], porque não é algo que as pessoas queiram encarar.
Temos de observar a terrível ironia do fato de que os nossos monumentos sobre a Guerra Civil, na região nordeste dos Estados Unidos, estão em péssimo estado. Há um maravilhoso poema de Robert Lowell, “Aos Mortos da União”, que fala realmente disso. Quando você vai ao sul, pelo menos até recentemente, antes do movimento pela remoção, os monumentos da guerra são muito bem cuidados. Existe uma dissonância interessante, nisso. Sou contra a retirada das estátuas porque acredito que possamos elucidar as pessoas por meio de placas, ou de um trabalho compensatório por um artista contemporâneo, o que evitaria que ignoremos a história.

Quem são Looking Glass e Laurie Blake? E o que eles significam em “Watchmen”?
Jean Smart - Laurie Blake, cujo nome real é Laurie Juspeczyk, se tornou agente do FBI e caça justiceiros, vingadores mascarados. Ela era um deles, e isso complica um pouco as coisas, e seus pais também foram justiceiros mascarados. Isso que quer dizer que ela tem muitos sentimentos negativos, muita bagagem trazida da infância e com relação aos pais. Por diversas razões ela foi para o FBI e, por isso, agora prende justiceiros, a quem considera não só ridículos como perigosos. Mas ao mesmo tempo, minha impressão é que ela sente um pouco de falta da vida que tinha, dos momentos empolgantes de quando ela era bem jovem, conheceu o Dr. Manhattan e se apaixonou por ele. Aquilo foi uma parte muito dolorosa de sua vida.
Tim Blake Nelson- Looking Glass, produto da cabeça de Damon Lindelof, é um personagem que usa uma máscara reflexiva e aproveita os confrontos e o mistério da máscara para determinar a verdade sobre suspeitos para a polícia de Tulsa. Ele é um justiceiro legalizado, que é o que a polícia se tornou, nesse universo alternativo.
 
As cenas de interrogatórios de Looking Glass são desconfortáveis de se ver, porque, embora não sejam violentas, há algo nelas que grita brutalidade e violência policial. Como é interpretá-las?
Tim Blake Nelson - Eram cenas singularmente empoderadoras. Foi empoderador de uma maneira quase assustadora. E isso aconteceu em um momento tão bom da minha vida como ator. O jogo foi virado contra mim naquele mesmo espaço por Jean e seu personagem, e aquela perda vertiginosa de status é algo realmente interessante de se experimentar como ator.
Jean Smart - É engraçado, mas algo acaba de me ocorrer pela primeira vez. Fico imaginando se existe alguma pequena parte de Laurie, que sente uma ponta de ciúmes. Sabe o que quero dizer? Que ela sente falta daquela sensação de que você está falando. Sabe? Nunca havia pensado dessa forma.
 
Laurie Blake passa por uma transformação quando põe a máscara. Isso é algo que lhe faria falta caso você deixasse de ter a capacidade de se transformar e de ser absolvido?
Jean Smart - Sim, e colocar qualquer pessoa com quem você esteja lidando em uma posição vulnerável e subserviente. Quase como que o carrasco mascarado. Não preciso ser responsável pelo que estou fazendo. Estou só fazendo meu trabalho.
 
Tim, seu personagem usa uma das máscaras mais impressionantes da série.
Tim Blake Nelson - Acho que a série está examinando não só o que acontece quando os personagens se escondem por trás de máscaras físicas reais, mas a maneira pela qual usamos máscaras –quer estejamos com elas, quer não. E aí elegemos líderes que ocultam de nós deliberadamente o que são, por trás de suas máscaras e de identidades de que eles se apropriam para nos levar a votar neles. Isso acontece de maneiras bem pequenas e em grande escala. Os seres humanos usam máscaras para ganhar poder.
Jean Smart - E também estamos falando sobre como os computadores e celulares são máscaras modernas, por trás das quais as pessoas se sentem anônimas e por trás das quais elas podem despejar toda sua raiva. Quando não é preciso encarar os seres humanos, as pessoas agem de maneiras primitivas.

A série tem muitas personagens femininas fortes. É uma série feminista, em sua opinião?
Jean Smart - Não pensei nela dessa maneira. Não sei se é necessário pensar nela dessa maneira ou rotulá-la assim. Só quero que cada pessoa tire alguma coisa dela, algo de diferente. Não quero colocar quaisquer rótulos ou expectativas nisso.
Tim Blake Nelson - Certamente não se trata de alguma coisa que não possa ser caracterizada como uma peça feminista, mas também é muito mutável, e muda de foco e identidade de episódio a episódio de uma forma que é realmente deliciosa e foge a qualquer caracterização.

Como uma pessoa que cresceu em Tulsa, você sente, Tim, que aquilo que vem acontecendo em termos de tensão racial e movimento da supremacia branca é algo que sempre esteve presente? E a maneira pela qual as pessoas vêm expressando racismo simplesmente ganhou legitimidade ou existe algum elemento novo que vem sendo atiçado e encorajado?
Tim Blake Nelson - Creio que é algo que evoluiu desde o nosso pecado original. Temos a personagem de Joanna Burden, em “Luz em Agosto”, de William Faulkner, que basicamente diz a John Christmas que “isso de identidade branca e identidade americana jamais desaparecerá. Jamais desaparecerá. Não desaparecerá, simplesmente”. Acho que isso será verdade até que, dentro de milênios, se não tivermos destruído o planeta, inevitavelmente nos tornemos uma só raça mestiça no planeta, porque acho que é nessa direção que caminhamos. Sabemos que, mesmo que o homo sapiens tenha destruído o homem de neandertal, temos algo de neandertal em nós [...] Mas o problema é o que os neandertais não tinham e o homo sapiens tinha, ou seja, o fato de que o homo sapiens era mais social, tinha mais empatia e colaborava melhor com os outros.
Jean Smart Tenho mais DNA neandertal do que quase qualquer pessoa no banco de dados 23andMe [empresa que oferece relatórios sobre ancestralidade e saúde com base em análise de DNA].
Tim Blake Nelson - Mas acho que é evolutivo. O racismo não vai desaparecer. Acredito até que todos sejamos um, e com sorte a humanidade persistirá por tempo suficiente para que isso aconteça.
Jean Smart - Sou um pouco mais otimista do que Tim. Espero que, pelo conhecimento, educação e ao vivermos juntos, descubramos um caminho. Creio que durante algum tempo, nas décadas de 1960 e 1970, todo mundo supostamente devia deixar de ver a cor da pele, e pensar nas demais pessoas como apenas pessoas, o que soa bem mas não é muito realista e na verdade nem muito útil. E não acho que seja isso que a comunidade negra deseje, hoje. Creio que eles desejem muito ser identificados como negros, e precisamos respeitar sua história e cultura como distintas da história e cultura dos americanos brancos. E de alguma forma tenhamos respeito mútuo e consigamos coexistir. Mas sempre que fazemos uma série como essa, ou um filme, um livro, uma canção, com sorte estamos ajudando as pessoas a refletir. ​

Tradução de Paulo Migliacci

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