Fã da folia, idoso com Alzheimer ganha 'Carnavô' da família
O Carnaval era o período mais esperado por Teotonio Pires Ferreira durante a juventude. Na pequena cidade de Cajuri, no interior de Minas Gerais, o aposentado passava a folia em bailes, ao som de marchinhas.
Ferreira tornou-se pai. Passou para os filhos o amor pelo período festivo. Hoje, aos 92 anos, acometido pela doença de Alzheimer, é homenageado anualmente pela família e tem o seu próprio festejo: o "Carnavô".
No domingo passado, os filhos, netos e bisnetos do aposentado se reuniram em mais uma comemoração familiar. Com camisas em homenagem a Ferreira, eles levaram confetes, serpentinas e a alegria do Carnaval para a casa do idoso.
Em uma cadeira de rodas, Ferreira viu a família reunida. As filhas colocaram adereços no pai, como um colar havaiano e um chapéu colorido, e o empurraram ao som das marchinhas que o idoso ouve desde a juventude.
Apesar de Ferreira enfrentar o agravamento do Alzheimer - ele necessita de ajuda para os cuidados mais básicos -, os familiares acreditam que o "Carnavô", realizado há nove anos pela família, traz parte da alegria da juventude para o idoso.
"A nossa comemoração é uma forma de resgatar a história do meu avô. Acredito que ele se sente vivo quando fazemos. É como se ele voltasse a se sentir parte de algo. Trazemos de volta uma época de que ele gosta muito. Além disso, ver a família reunida sempre foi um momento de alegria para ele", diz a estudante Thalita Ferreira, de 30 anos, uma das netas do aposentado.
A PAIXÃO PELO CARNAVAL
Os familiares de Ferreira acreditam que o idoso comemora o Carnaval desde a infância. "Acho que ele começou a participar da folia há mais de 80 anos", diz a empresária Ana Rita Ferreira, de 60 anos, filha do aposentado.
Nascido em Cajuri, Ferreira gostava de frequentar o baile de Carnaval da cidade, que era realizado no único salão de festas da região. "Em certa época, ele também foi o organizador da festa. Era o meu pai quem alugava o salão, contratava banda, que tinha de ser de outra cidade, e comprava confetes e serpentinas", conta Ana à BBC News Brasil.
"A minha vida inteira, desde que me entendo por gente, meu pai sempre gostou muito de Carnaval", pontua a empresária.
No município mineiro, o aposentado trabalhava como alfaiate. Ferreira se casou com a dona de casa Terezinha Pires Ferreira, que morava na mesma cidade. Juntos, tiveram 10 filhos.
Em meio a uma crise financeira, a família se mudou para São Paulo, em 1969. "Quando deixaram Cajuri, meus pais não tinham dinheiro nem mesmo para passagens de ônibus. Saímos da nossa cidade junto com a mudança, em um caminhão", relata Ana.
Na capital paulista, ele trabalhou como alfaiate e depois tornou-se vendedor em uma loja de roupas, onde permaneceu até se aposentar. Apesar da distância de mais de 650 quilômetros entre as cidades, Ferreira ia a Cajuri com a família durante o Carnaval em todos os anos. "Ele nos reunia em um ônibus e íamos. Sempre foi um momento muito especial para o nosso pai", relembra Ana.
Quando os netos nasceram, eles também acompanhavam a família no Carnaval. "Me lembro de, desde muito nova, ir com a família para Cajuri. Nos bailes da cidade, tocavam muitas marchinhas. As crianças brincavam tranquilas pelas ruas", detalha Thalita.
O ALZHEIMER
As viagens para a cidade de Minas Gerais cessaram no início dos anos 2000. A esposa de Ferreira começou a ficar doente. Em 2009, ela morreu em decorrência de problemas pulmonares e cardíacos. O homem ficou abalado com a perda da companheira.
Desde então, ele começou a esquecer informações consideradas simples. Os familiares o levaram ao médico e o aposentado foi diagnosticado com Alzheimer. A doença, cujas causas ainda são estudadas, é o tipo mais comum de demência - estimativa é de que 5% da população acima dos 65 anos possa desenvolvê-la. Após os 80 anos, a estimativa sobe para 30%.
"Depois do falecimento da minha mãe, a doença dele se agravou muito. Antes, ele tinha alguns esquecimentos, mas não era algo muito comum", explica Ana. Ferreira faz acompanhamento médico. Os tratamentos disponíveis aliviam os sintomas, mas não impedem a progressão do Alzheimer.
A família enfrentou dificuldades, a princípio, para lidar com a doença do patriarca. "A pessoa vai esquecendo muito do que ela é. Então, tivemos de reaprender a lidar com o meu avô, porque ele sempre foi muito ativo e animado, sempre coordenou as coisas", conta Thalita.
A doença evoluiu e Ferreira enfrenta o período mais grave. O idoso não consegue mais falar, nem andar. "Ele mora sozinho, mas conta com a ajuda de cuidadores durante todo o dia", comenta Ana. Para aliviar os sintomas, os filhos se revezam nos cuidados com o pai. "Nos preocupamos em sempre ter alguém com ele no almoço ou no café da tarde", diz a empresária.
"Nós sabemos que às vezes ele esquece de quem nós somos, mas nunca esquecemos quem ele é", declara Thalita.
O CARNAVÔ
Em meio à progressão da doença, uma das preocupações dos familiares de Ferreira era o fato de o idoso não conseguir mais comemorar o Carnaval. Para que não ficasse longe dos festejos, criaram o "Carnavô", nome dado por um dos netos. O primeiro festejo foi em 2010.
A comemoração é feita na casa onde ele mora há quase 50 anos, em São Paulo. Entre as marchinhas mais tocadas estão "Bandeira Branca", "Cabeleira do Zezé" e "Nós, os Carecas", que sempre estiveram entre as preferidas de Ferreira. "Ele não consegue mais falar, mas percebemos que ele balbucia algumas palavras quando tocam as marchinhas, como se estivesse se recordando", afirma Ana.
O evento virou uma tradição na família e é preparado com quase um ano de antecedência. "Fazemos uma ou duas vezes ao ano. Em 2019, fizemos no dia 17 e vamos repetir em 10 de março. Costumamos dizer que é para comemorar o pré e o pós-Carnaval", conta Thalita. No domingo, cerca de 40 parentes do aposentado - ele tem 19 netos e 13 bisnetos - participaram da comemoração.
De acordo com o psiquiatra Guilherme Kenzzo, especializado em Psicogeriatria, a família tem papel fundamental na melhora da qualidade de vida de um idoso com Alzheimer. Entre as atividades que podem trazer bons resultados, segundo o profissional, estão aquelas de que o paciente gostava antes de desenvolver a doença.
Em relação à família de Ferreira, o médico pontua que o Carnaval é uma boa maneira de resgatar a história do idoso. "Me parece uma atitude excelente. Isso traz memórias afetivas, que, provavelmente, ainda não foram perdidas e podem trazer conforto ao paciente, além de relaxamento, alegria e melhorar a sua qualidade de vida", ressalta.
Os parentes de Ferreira acreditam que os dias em que realizam o "Carnavô" são as datas mais felizes para ele. "Isso muda os dias seguintes dele, que fica mais disposto. Ele dá muita risada com a nossa folia. Dá pra ver, no rosto dele, como as coisas melhoram. Quando acaba a comemoração e estamos indo embora, ele até pega nas nossas mãos para que a gente não vá", relata Thalita.
"Acho que durante essa comemoração, ele se recorda de toda a família e de tudo o que viveu no Carnaval ao longo da vida. Por conta do Alzheimer, acredito que é um dos poucos momentos em que ele consegue se sentir parte da família que construiu", diz a estudante.
No domingo, Thalita compartilhou imagens do "Carnavô" nas redes sociais. A publicação recebeu elogios de amigos e até de desconhecidos. "Quis compartilhar esse momento porque é uma história muito bonita da minha família. Me orgulho muito disso. E essa publicação também pode ser um incentivo para outras famílias que têm idosos, para que entendam como é importante estar sempre junto com eles."
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