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Celebridades
Descrição de chapéu The New York Times

Jessica Chastain diz que superou síndrome de impostora: 'Achava que não merecia elogios'

Atriz, que usa posição em Hollywood para explorar a condição da mulher, assume um dos papéis femininos mais importantes do teatro ocidental (mas não quer dar 'palestrinha')

Jessica Chastain posa para foto em Nova York - Thea Traff/The New York Times
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Nova York
The New York Times

Menos de uma semana antes de estrear na Broadway em uma nova montagem de "Uma Casa de Bonecas", no papel de Nora, uma das personagens femininas mais emblemáticas do teatro ocidental, Jessica Chastain confessou uma preocupação incômoda. "Não quero que pareça uma palestra da TED", ela disse.

Chastain estava acomodada em uma sala de visitas no piso superior do Hudson Theater, onde as apresentações preliminares de "Uma Casa de Bonecas" começaram em 13 de fevereiro. Ela estava enfrentando um resfriado, bebia um chá de ervas Throat Coat Coat, e usava um suéter azul-marinho e tênis brancos, acompanhados por um casaco castanho macio que a envolvia suavemente.

A atriz estava refletindo sobre o que significa ser a protagonista em uma reinterpretação radical e crua da peça que Henrik Ibsen lançou em 1879 —uma obra há muito celebrada como uma exploração profunda da maneira pela qual os papéis de gênero confinam as mulheres, e distorcem suas identidades.

Chastain lutou pela igualdade salarial em Hollywood, insistiu por apoio à [organização de planejamento familiar] Planned Parenthood e usou o tapete vermelho e suas entrevistas em talk shows para defender causas como a das mulheres que estavam protestando contra a repressão no Irã. Em filmes muito variados, como "A Hora Mais Escura" e "Os Olhos de Tammy Faye", ela encarnou mulheres complicadas e ambiciosas que se recusam a ser restringidas.

Por isso, ela se questionou quanto a assumir o papel de Nora —a mais famosa dona de casa oprimida da história do teatro: será que isso não pareceria deliberado demais, quase como que uma forma de pregar uma mensagem?

"Sou sempre ativista, sempre muito franca e, por isso, só o fato de ter selecionado aquele papel já significaria alguma coisa, certo?", disse Chastain. "Assim, de que maneira, como atriz, eu poderia abordá-lo de um modo que não fizesse parecer que eu estava lá para fazer uma palestra à audiência?"

A resposta veio quando ela começou a perceber que Nora não é uma vítima dominada por seu marido condescendente, Torvald. Ela desempenha o papel de esposa bonita, frágil e infantilizada por um motivo.

"Quando ela se vê bloqueada, trabalha dentro de um sistema para ganhar poder, e todos nós somos responsáveis por isso. Portanto, não é apenas, oh, Torvald é um vilão porque colocou Nora numa jaula. Nora entrou na jaula a fim de ganhar o pouco de poder que tem", disse Chastain. "Porque as meninas são ensinadas desde novas a serem sempre as pequenas, certo? Por isso as nossas vozes são mais agudas, tentamos não ser ameaçadoras, somos dóceis e meigas. Isso é como que criado em nós. Mas também é parte da maneira pela qual ajudamos a que as coisas continuem como são, a que as mulheres não sejam vistas como iguais. Nós desempenhamos um papel, para que isso nos torne palatáveis, na esperança de que assim as pessoas nos ouçam."

Ela parou, preocupada por estar escorregando para o território de uma palestra da TED. "Sei que estou divagando demais" –e logo em seguida, como se percebendo que tinha interrompido seu raciocínio, ela concluiu. "Espero que as pessoas vão ao teatro e pensem na maneira pela qual elas mesmas fazem aquilo –como elas deixam de ser seus eus autênticos a fim de se tornarem palatáveis para os outros."

Chastain trabalhou pela última vez na Broadway há uma década, quando estrelou "A Herdeira", no papel de Catherine Sloper, uma aristocrata desajeitada e sem graça. Usando anáguas, roupas com grandes laços de fita e uma prótese de nariz, Chastain mergulhou nos maneirismos e estética da peça do século 19, estudando como fazer uma mesura e como segurar devidamente um leque; ela chegou a fazer bordados nos intervalos dos ensaios, para ficar na pele da personagem.

Em "Uma Casa de Bonecas", adaptação dirigida pelo britânico Jamie Lloyd que deve estrear em 9 de março, Chastain não conta com parafernália ou ambientação teatral em que se apoiar. Não há trajes de época, não há adereços, nada que se assemelhe a um cenário. Não há sequer uma porta que ela possa bater violentamente, no infame gesto de despedida de Nora. A peça foi despojada de todos os elementos exceto os mais essenciais —a história de Ibsen e as emoções que ela provoca nos atores e no público. Não é um exagero dizer que a produção toda depende da força do desempenho de Chastain.

É um desafio que a atriz parece apreciar. "Ela se dedica 100% a cada segundo. Já desde a primeira leitura, ela estava totalmente empenhada na viagem psicológica e emocional", disse Lloyd. "Essa é a chave da abordagem de Jessica. Sim, é uma peça profundamente política que ressoa hoje em dia, mas é uma peça intensamente psicológica."

Perguntada como se sentiu ao atuar ao vivo de uma forma tão despojada, Chastain respondeu sem rodeios: "É assustador", ela disse. "Trabalhar dessa forma expõe demais uma atriz, porque na realidade tudo gira em torno das palavras, dos sentimentos e das relações. O comentário de Jamie é sempre o mesmo: ‘Simples, simples’. Simplifique, simplifique, simplifique".

Ainda que isso fosse enervante, no começo, Chastain se adaptou ao extremo minimalismo de Lloyd, que é austero a ponto de parecer quase não teatral. Isso é libertador, disse a atriz. "Parece que não me coloco no meu próprio caminho", ela disse. "Tipo, não tenho de mostrar coisa alguma."

UMA ASCENSÃO METEÓRICA, E A ANSIEDADE QUE ISSO CAUSOU

Muita coisa aconteceu na carreira de Chastain desde a última vez que ela subiu a um palco. Ela recebeu o Oscar como melhor atriz no ano passado por sua interpretação da carismática e chorosa pregadora televisiva Tammy Faye Bakker, em "Os Olhos de Tammy Faye", um filme que ela mesma desenvolveu, em um esforço para humanizar uma mulher escarnecida e incompreendida.

Chastain ganhou um Globo de Ouro em 2013 pelo seu papel como analista da CIA em "A Hora Mais Escura". Apareceu em filmes comerciais de grande orçamento como "Perdido em Marte" e "Interestelar", e em filmes de arte e adaptações de clássicos como "Miss Julie", baseado na peça homônima de August Strindberg.

A atriz estrelou em produções de prestígio na televisão, entre as quais "Cenas de um Casamento", que lhe valeu outra indicação para o Globo de Ouro, e "George & Tammy", em que interpretou Tammy Wynette, modulando sua voz para reproduzir o tom metálico da cantora country. As duas séries exploram, de formas diferentes, as maneiras pelas quais as mulheres navegam casamentos, divórcios e suas complicadas consequências.

Em 2016, Chastain criou uma produtora, a Freckle Films, que usa para desenvolver projetos centrados na mulher. Ela se casou com o executivo de moda italiano Gian Luca Passi de Preposulo, em 2017, e a família agora vive em Nova York.

Ao longo do caminho, ela avançou de ser conhecida como "a It Girl das pessoas cabeça" (um rótulo que implicava que sua fama poderia ser fugaz) para uma posição de algum poder em Hollywood. Isso a inspirou a tentar coisas que a aterrorizavam no passado –por exemplo estrelar a remontagem de um clássico na Broadway.

"Não sinto a angústia e o medo que senti da última vez que estive no palco", disse Chastain. "Agora, sinto como se tivesse trabalhado arduamente e estabelecido uma posição para mim na indústria. As pessoas sabem que trabalho duro."

O teatro, afinal, foi onde ela descobriu o seu amor pela atuação. Chastain cresceu em uma família de classe trabalhadora no norte da Califórnia, assistiu a "Ricardo 3º" no Oregon Shakespeare Festival, durante uma viagem, e se encantou na hora. Apesar de não ter terminado o curso de segundo grau, estava determinada a estudar na Juilliard School e, por isso, conseguiu um diploma supletivo e foi aceita pela escola com uma bolsa de estudo; isso fez dela, aos 22 anos, a primeira pessoa de sua família a começar um curso universitário. No seu segundo ano, ela fez parte do elenco de "A Gaivota", de Anton Chekhov, e alguns anos depois de ela se formar, Chastain contracenou com Al Pacino em uma produção teatral de "Salomé", de Oscar Wilde, mais tarde transformada em filme.

Ela precisou de anos de pequenos papéis em séries como "E.R." e "Law & Order" antes que sua carreira cinematográfica decolasse, mas, em 2011, Chastain de repente se tornou onipresente. Trabalhou em seis filmes, entre os quais "A Árvore da Vida", "O Abrigo" e "Histórias Cruzadas", que lhe valeu sua primeira nomeação ao Oscar.

A enxurrada de trabalhos e a atenção recebida foram empolgantes, mas aterradores. Quando Chastain estrelou em "A Herdeira", uma adaptação para a Broadway do romance "Washington Square", de Henry James, as expectativas eram enormes. O fato de que alguns críticos de teatro não apreciaram o seu trabalho não ajudou; um exemplo foi Ben Brantley, do New York Times, que disse que a desempenho de Chastain "às vezes mostra a insipidez que eu associo a uma leitura não ensaiada de roteiro".

"Sou uma pessoa sensível e na última vez que fiz teatro a pressão era enorme, e toda aquela pressão me tirou a alegria", disse Chastain. "No início, quando recebi toda aquela atenção tão rapidamente", ela prosseguiu, "a sensação era de que aquilo não ia durar. Eu me sentia assustada demais. Minha sensação era de que os elogios eram imerecidos."

RETOMANDO UMA PEÇA DE 1879, COM NOVAS NUANÇAS

Chastain não estava ansiosa por regressar ao palco quando Lloyd a procurou, seis anos atrás; ele é um diretor muito elogiado, cuja remontagem minimalista de "Cyrano de Bergerac" cativou o público na Brooklyn Academy of Music em 2022.

Os dois se conheceram por intermédio de um amigo mútuo, James McAvoy, que trabalhou com Chastain no filme independente "Dois Lados do Amor" (2014), e estrelou como personagem principal no "Cyrano" de Lloyd. O diretor perguntou à atriz por que ela tinha deixado de fazer teatro. "Acho que a minha resposta foi que eu tinha medo demais", ela disse.

Em um almoço, ele a convenceu a reconsiderar, e depois pediu que propusesse uma peça de teatro que os dois pudessem fazer juntos. Por volta de 2019, eles decidiram trabalhar em "A Duquesa de Malfi", uma peça de John Webster, mas descobriram que uma remontagem da peça estava para entrar em cartaz em Londres. Em seguida, Chastain enviou uma mensagem de texto a Lloyd —e que tal "Uma Casa de Bonecas"?

Parecia empolgante, e arriscado. Há mais de um século, "Uma Casa de Bonecas" ocupa território sagrado, e é venerada como um trabalho teatral instigante e que apresenta argumentos premonitórios sobre a autonomia das mulheres. A heroína de Ibsen, Nora, inicialmente parece ingênua e dependente do seu marido, mas logo se desilude com a maneira pela qual ele a controla e deprecia. Ela acaba por deixá-lo, em uma cena que o dramaturgo George Bernard Shaw descreveu como "a batida de porta que o mundo inteiro ouviu".

Quando estreou, em 1879 em Copenhagen, "Uma Casa de Bonecas" foi recebida com aclamação pela crítica, mas também foi muito atacada, inclusive por muitas mulheres. A decisão de Nora de abandonar sua família foi considerada tão chocante que algumas atrizes se recusavam a interpretar o papel.

Ao longo das décadas, a personagem veio a ser considerada como um dos papéis mais exigentes e gratificantes do teatro. Liv Ullmann foi indicada para um Tony por sua atuação em uma remontagem da peça na Broadway, em 1975. Em 1997, a última vez que "Uma Casa de Bonecas" foi encenada na Broadway, Janet McTeer ganhou um Tony por interpretar Nora. Em 2017, o dramaturgo Lucas Hnath recebeu elogios por sua continuação provocadora, "Uma Casa de Bonecas, Parte 2", que explorava a premissa de que Nora (interpretada por Laurie Metcalf, que também ganhou um Tony) voltava para casa 15 anos mais tarde.

Quando Chastain e Lloyd decidiram que iriam colaborar na remontagem de "Uma Casa de Bonecas", estavam conscientes de que a encenação da peça agora –depois do MeToo, depois de 144 anos de história teatral— exigia um novo grau de nuance. Seu objetivo era eliminar a bagagem associada a "Uma Casa de Bonecas" e recomeçar do zero, disse Lloyd. "A ideia é eliminar todas as expectativas."

Os dois tinham planejado encenar a peça em Londres no segundo trimestre de 2020, com um texto adaptado por Frank McGuinness. Quando a pandemia colocou o projeto em espera, Lloyd viu uma oportunidade para uma nova adaptação por uma dramaturga, e Chastain, que estava abalada com o impacto da Covid sobre Nova York, propôs transferir a montagem para a Broadway.

"AS COISAS FICARAM MUITO ÍNTIMAS, MUITO RÁPIDO"

Chastain, de fato, estava pensando em "Uma Casa de Bonecas" enquanto trabalhava em "Cenas de um Casamento", uma minissérie da HBO inspirada por Ingmar Bergman e seu retrato de um casamento em colapso (Bergman foi influenciado por "Uma Casa de Bonecas", e lançou uma adaptação chamada "Nora" em 1981).

A série de TV da HBO, estrelada por Chastain e Oscar Isaac, inverte a dinâmica de gênero do original; Chastain é a parceira que se sente sufocada pelo casamento e deixa o marido —uma reviravolta que ecoa a trama de Ibsen.

Uma das principais roteiristas da série era Amy Herzog, dramaturga que é obcecada por "Uma Casa de Bonecas" desde a adolescência e fez uma homenagem ao trabalho em sua peça "Belleville". Ela aceitou rapidamente o convite para trabalhar em uma adaptação e, no início do ano passado, começou a escrever uma versão da peça de Ibsen, baseada em uma tradução de Charlotte Barslund. Herzog e Chastain concordaram em que Nora deveria ser interpretada como um personagem mais ambíguo.

"Ela não entrou no projeto querendo se fazer de vítima trágica. Entrou querendo encontrar aquelas cores mais escuras e sutis", disse Herzog sobre Chastain. "Ela está disposta a ser antipática, e é destemida ao explorar todo o tipo de coisas estranhas e desagradáveis."

Chastain, que raramente fala de sua vida privada, mencionou sua família quando descreveu a maneira pela qual a sociedade julga mulheres como Nora, que rejeitam o casamento e a maternidade. "A ideia de deixar os meus filhos seria horrível, e devastadora", ela disse. Ao mesmo tempo, ela compreendeu e quis captar a forma como Nora se sujeitou às restrições da sua vida. "Nora rejeita a vida que tem para se tornar um ser humano antes de tudo", ela disse.

Quando os ensaios começaram, em janeiro, Lloyd pediu ao elenco que chegasse com o texto decorado, para que os atores pudessem interagir, e não simplesmente recitar o diálogo, desde o começo. "Algumas das descobertas que eles fizeram, desde a primeira semana de ensaios, ainda hoje fazem parte da produção, porque eles estavam totalmente mergulhados no momento e puderam ser tão inventivos e espontâneos quanto possível", disse Lloyd.

No segundo dia de ensaio, os atores usaram pequenos microfones posicionados perto de suas bocas, o que lhes permitia sussurrar diálogos e ouvir a respiração dos colegas. "As coisas se tornaram muito íntimas, muito rápido", disse Arian Moayed, que interpreta Torvald.

Chastain, ele disse, tem uma abordagem granular quanto ao texto e está disposta a assumir riscos emocionais em sua atuação. "Ela tem uma capacidade inacreditável de empatia com relação a tudo e todas as coisas", disse Moayed. "Isso é algo que surge nela com facilidade."

A atuação de Chastain em "Uma Casa de Bonecas" começa antes mesmo do início da peça. Na primeira noite das apresentações prévias, o público ainda estava se acomodando em seus assentos quando a cortina se ergueu e revelou Chastain, usando um vestido simples, comprido e escuro, com o cabelo acobreado solto e sentada em uma cadeira de madeira, enquanto o palco a girava em círculos lentos e hipnóticos.

Durante cerca de duas horas, sem intervalo, ela passa quase o tempo todo no palco, muitas vezes como que pregada à sua cadeira, em uma manifestação tangível da paralisia de Nora, enquanto sua atitude oscila da ternura à submissão, e à compreensão de que ela não sabe quem é. Alguns de seus diálogos eram sussurros, em tons tímidos, mas frenéticos, acompanhados por suspiros.

Chastain parecia esgotada, depois daquela primeira atuação pública; seus olhos estavam molhados de lágrimas enquanto agradecia. Mais cedo, na sala de visitas do teatro, quando perguntada sobre como se sentia fazendo teatro agora, ela parou para pensar. "Não sinto tanta necessidade de me provar", disse. "Dez anos atrás, eu sofria de síndrome do impostor, que é algo que muitas mulheres sentem, sabe? E talvez agora eu sinta que não, não, estou em casa."

Tradução de Paulo Migliacci

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