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Celebridades
Descrição de chapéu The New York Times

Modelo Iman cria perfume para celebrar David Bowie: 'Enlace de memórias'

'Foi uma maneira de processar meu pesar', diz mulher do cantor

A modelo Iman NYT

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Guy Trebay
The New York Times

Você jamais entrará no quarto dela. Provavelmente nem passará da porta da frente de sua casa. Por anos, as pessoas tentam deduzir onde exatamente a top model Iman, 66, e seu marido, David Bowie (1947-2016), tinham seu esconderijo nas Montanhas Catskill, no interior do estado de Nova York.

Mas ninguém conseguiu. Mesmo hoje, poucos dos moradores de Woodstock conhecem o local exato, embora não fique longe da histórica cidadezinha que Bowie, completamente urbano, satirizou em sua primeira visita, em 2002, como "bonitinha demais para ser descrita".

Mas quando, ao gravar um álbum em um estúdio local anos mais tarde, Bowie encontrou um anúncio sobre um terreno nas montanhas cuja vista pouco mudou desde que James Fenimore Cooper descreveu a paisagem em seus livros, ele percebeu algo mais naquele cenário: uma oportunidade de escapar da fama.

"David e eu sempre protegemos demais a nossa privacidade", me disse Iman, em uma tarde da metade de outubro. "Havia coisas que ninguém mais seria autorizado a ver", explicou a mulher que, como seu marido, passou a maior parte de sua vida sob um microscópio. "Nossa casa, nosso quarto, nossa filha sempre foram assuntos proibidos".

Quando você abre uma exceção para uma [publicação], "não pode dizer não às outras", ela disse, falando sobre revistas que, de fato, destacaram a decoração de diversas das casas dos Bowie em suas páginas –ainda que apenas depois que o cantor e compositor, um homem de negócios astuto, as tivesse colocado à venda e se mudado.

Estávamos acomodados em um reservado com assentos de couro no Polo Bar. Recentemente liberado do lockdown, o clube da grife Ralph Lauren para os nova-iorquinos mais reluzentes mostrava grande movimento, embora ainda não estivesse servindo almoço.

Mas isso não é muito importante. Ao descobrir que Iman estaria em Manhattan por alguns dias a fim de promover seu primeiro projeto desde a morte de Bowie –um perfume chamado Love Memoir, a primeira fragrância concebida por ela, inspirada pelos quase 25 anos de relacionamento entre os dois–, Lauren não só abriu as portas de seu restaurante para recebê-la mas criou o look que ela usou para a ocasião, um vestido floral acompanhado por um cinto prateado grosso e botas wellington de pelica.

"Quando David e eu nos conhecemos, os dois já tínhamos carreiras de sucesso, e os dois tínhamos passado por relacionamentos anteriores", disse Iman. Nascida Iman Adbulmajid, ela tinha 36 anos e tinha conquistado a fama e o direito a ser reconhecida apenas pelo prenome há muito tempo, quando ela e Bowie, que então tinha 45 anos, se casaram.

"Sabíamos o que queríamos um do outro", disse Iman ao modo franco que se tornou sua marca. As pessoas podem imaginar muitas coisas sobre Iman, projetando sobre a tela de sua beleza um conjunto de fantasias engendradas por seu refinamento natural, porte aristocrático e um pescoço tão elegante e bem delineado que ela o considerava quase como um superpoder, nas seleções de elenco para desfiles em seu período como modelo.

Na verdade, Iman é hilariante, e seu humor tem um lado obsceno. Como sabem seus 800 mil seguidores no Instagram, ela não hesita em expressar suas verdades. As postagens dela na mídia social se alternam entre fotos glamorosas e verdades caseiras expressas em estilo sucinto ("todos temos capítulos que gostaríamos que continuassem inéditos"), que, por terem sido postados por ela, ficam com menos cara de frases de ímã de geladeira.

Ela é extremamente boca suja e divide risos conspiratórios facilmente com o repórter –pelo menos até que o barulho de um bartender despejando pedrinhas de gelo em um balde ameace calar todas as conversas.

Da primeira vez que isso acontece, Iman ignora o fato. Da segunda, tudo parece se congelar instantaneamente ao seu redor. "Oh, não, não, não, não", diz Iman, despachando um subordinado que estava instalado na mesa ao lado para encerrar o assunto com polidez ríspida.

Acima de tudo, o que ela e Bowie desejavam era um refúgio que os protegesse de um público sempre ávido pelos detritos emocionais das celebridades. E os dois também queriam manter distância com relação ao acúmulo de resíduos psicológicos de suas mitologias.

Em contraste com sua persona pública camaleônica e cuidadosamente construída, sua posição como superastro e sua presença pública sempre imponente, na vida privada David Bowie era introspectivo, um autodidata dedicado e, de acordo com Iman, um marido à moda antiga, tão enfeitiçado pelo talento doméstico dela ("eu faço um frango grelhado muito, muito, muito bom") que os dois raramente saíam para comer em restaurantes, depois que se casaram.

Quando os dois se conheceram, Iman tinha estabelecido há muito tempo uma marca de cosméticos de muito sucesso, Iman Cosmetics, especializada em produtos para a pele de pessoas não brancas. E ela dedicou décadas a transformar o suposto glamour de uma carreira como modelo em uma fortuna pessoal.

"Jamais me interessei por ser uma pessoa fabulosa", disse Iman. "Cheguei a este país como refugiada. Meus pais começaram pobres na Somália, se deram bem. Mas depois perderam tudo. Por isso, vir para os Estados Unidos foi uma maneira de eu me reconstruir. Era um plano de negócios".

Fabulosamente, a carreira de Iman começou na década de 1970 com uma ficção risível inventada pelo fotógrafo, e inveterado fabulista, Peter Beard.

Foi Beard que apresentou Iman a Diana Vreeland, da revista Vogue, afirmando que sua protegida somali —filha de um diplomata e educada em colégios particulares no Cairo e na Universidade de Nairóbi– era filha de um pastor de cabras e que ele a havia encontrado por acaso em uma viagem às selvas da África.

"Nunca estive perdida, para ser ‘encontrada’ na selva", disse Iman com uma risada sarcástica. "Jamais estive em uma selva na minha vida". Desde seu primeiro encontro, Iman disse, ela e Bowie reconheceram um no outro algo de raro e sólido.

A conexão emocional imediata de que o músico falou ao descrever esse primeiro encontro foi reforçada por uma convicção compartilhada de que haviam encontrado espíritos irmãos, um no outro, prontos a construir uma parceria longe do circo da celebridade.

"Conheço minha identidade, e David conhecia a dele", disse Iman. "Quando nos conhecemos, chegamos a um acordo sobre continuar a viver uma vida com propósitos". Os dois são voluntariosos, e ambos tinham um foco muito intenso.

"Nosso foco era nós dois, aquilo que nos pertencia, e nossa filha", ela disse, se referindo a Alexandria Zahra Jones (Jones era o sobrenome real de Bowie), conhecida como Lexi. "Nós sempre protegemos demais um ao outro".

Em grau até surpreendente, o casal foi capaz de manter uma vida mais ou menos normal. A maior parte de seu tempo eles passavam escondidos no meio do agito, na parte sul de Manhattan. "Descobrimos que por aqui os paparazzi são meio preguiçosos", ela disse, diferentemente de Londres, onde uma breve expedição de procura de casas fez deles fugitivos.

"Estivemos lá por uma semana e fomos seguidos a cada segundo, do aeroporto até reembarcamos no avião. Achamos que seria impossível escapar a esse tipo de atenção, e por isso decidimos que o melhor era voltar para casa e deixar que os paparazzi persigam outras pessoas".

Lar, para eles, enquanto sua filha estudava na Little Red Schoolhouse (hoje LREI), uma escola progressista em Greenwich Village, era um apartamento perto do Puck Building, no Soho, que ela vendeu recentemente. "Eu vivia sozinha naquele lugar enorme, e era mais triste ficar lá acompanhada por minhas memórias, zanzando pela casa", ela disse.

Ao longo da década passada, e por parte do período que Bowie passou doente (algo que foi muito bem escondido da imprensa), o casal muitas vezes se recolhia à sua propriedade no interior do estado. E foi para lá que Iman voltou depois que Bowie morreu de câncer no fígado, em 2016. Foi só lá, na solidão, que ela conseguiu começar a processar seu pesar.

"Eu preferia não conversar com pessoa alguma", disse Iman, com exceção de sua filha, de sua agente e da ativista Bethann Hardison, uma vizinha e boa amiga da família. Iman caminhava todos os dias pelos bosques de sua propriedade, apreciando a vista intocada das montanhas. E inesperadamente começou a construir dólmens.

Em muitas culturas, ao longo da história, as pessoas empilharam pedras para marcar percursos, consagrar lugares sagrados, ou para significar meditação. Para Iman, construir dólmens se transformou em uma maneira diária de fazer tudo isso, e de organizar suas lembranças.

"Para mim, o isolamento fez bem porque, em Manhattan, não havia espaço para sofrer", ela disse. Desconhecidos a paravam na rua para expressar seu pesar, mas depois insistiam em pedir selfies. "Na mata, eu conseguia chorar, soltar minha dor", ela disse.

"Comecei a empilhar pedras, fazer um dólmen por dia. Isso me ajudou a encontrar mais alegria em minhas lembranças. E aos poucos foi se tornando menos doloroso para mim ver aqueles lindos crepúsculos que meu marido amava, sem pensar em mostrar aquilo a David".

A ideia de criar um perfume evoluiu natural e organicamente durante o isolamento, ela disse. "Estou no negócio da beleza desde 1994, e nunca tinha criado um perfume". Cada cultura tem seus rituais de memória: acender velas, construir altares, queimar incenso e destruir posses ritualmente.

Os vitorianos guardavam tranças e cachos dos cabelos dos entes queridos que haviam perdido, e o perfume de Iman é, em alguma medida, um ritual de luto vitoriano. O perfume é um enlace de memórias sobre a vida que ela e Bowie levavam.

Na embalagem há uma aquarela que ela pintou retratando um crepúsculo no interior do estado de Nova York. "As palavras dentro do vidro são palavras que venho escrevendo sobre o amor", ela disse. Love Memoir, que chega ao mercado nesta semana, tem um vidro em forma de duas pedras empilhadas, uma em vidro âmbar e a outra dourada.

A fragrância é uma mistura potente e, vale, dizer, ligeiramente anacrônica de bergamota, rosas e uma essência que era a favorita de Bowie. "Por 20 anos ou mais, só usei Fracas", disse Iman. Depois da morte de Bowie, ela descobriu ter vontade de usar o perfume dele –uma fragrância seca, com tons de terra e madeira, baseada em uma gramínea nativa do sul da Ásia conhecida como vetiver.

Por isso, ao trabalhar com os perfumistas da Firmenich para compor o Love Memoir, pareceu completamente natural que o vetiver fosse uma das notas mais persistentes da nova fragrância. "Pessoas já me perguntaram se planejo criar outra fragrância", disse Iman. "Não faço ideia, e não tenho essa intenção. Para mim, isso veio de modo completamente inesperado. Foi uma maneira de processar meu pesar e chegar a um acordo com minhas lembranças".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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