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Celebridades
Descrição de chapéu The New York Times

Como a pompa da Victoria's Secret e suas angels funcionou por tanto tempo

Modelos esguias de lingerie deram lugar a grupo mais diversificado

Modelo Sara Sampaio

Modelo Sara Sampaio AFP

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Vanessa Friedman
The New York Times

Desde que surgiu a notícia de que a Victoria’s Secret, gigante da lingerie e picadeiro de circo dos desfiles de moda, estava aposentando seu elenco de “anjos” em favor de um grupo diversificado de mulheres com currículos igualmente diversificados, a mídia está repleta de reações alegres de “até que enfim”, e de fotos que mostram passado e presente, conduzindo o leitor a um passeio por memórias de decotes, fantasias e clichês sobre felinas sensuais.

Depois do movimento #MeToo e dos recentes protestos por justiça social, as imagens que levaram a Victoria’s Secret a recordes de lucro e de audiência —e fizeram das modelos favoritas da grife parte da cultura pop— parecem não só retrógradas mas praticamente inimagináveis, como se tivéssemos encontrado vestígios de uma civilização perdida soterrados sob uma pilha empoeirada de cintas-ligas e meias 7/8.

Há, por exemplo, uma imagem de Heidi Klum em 2003, usando asas de 3,60 metros de extensão, um sutiã e calcinha decorados por cristais e uma gargantilha branca, uma espécie de coleira, no pescoço; temos Gisele Bündchen, Karolina Kurkova e Alessandra Ambrosio em calcinhas decoradas com detalhes em pele brancos, sutiãs, capuzes e botas longas de salto alto, interpretando um grupo de assistentes sacanas de Papai Noel.

Temos Klum uma vez mais, em 2008, com um gigantesco laço nas costas e correias decoradas por brilhantes em torno de suas roupas de baixo sumárias e vermelhas; temos Isabeli Fontana, em 2010, usando uma espécie de uniforme metálico de halterofilismo e ostentando um par de halteres prateados. Temos Karlie Kloss como um cavalo-marinho sensual, Adriana Lima como uma super-heroína sexy, e Joan Smalls como uma tigresa sensual saltando através de... um falso aro de fogo?

Mas antes que descartemos essa parafernália como um borrão embaraçoso em nossa cultura coletiva, talvez devamos fazer uma pergunta diferente. Por que isso tudo funcionou por tanto tempo, para começar?

Em seu pico, afinal, o desfile de moda da Victoria’s Secret, que foi realizado a cada ano entre 1995 e 2018, era transmitido para mais de 100 países, assistido por milhões de pessoas em todo o mundo e ajudava a propelir vendas anuais de quase US$ 7 bilhões (R$ 35,2 bi). A companhia investiu capital considerável para comprar legitimidade no mundo da moda —e aos olhos daqueles que acompanham o setor.

Antes que desfiles de moda passassem a circular pelo mundo, os desfiles da Victoria’s Secret já tinham circulação internacional; quando o desfile da grife chegou à França, em 2016, foi realizado no Grand Palais, local normalmente reservado à grife Chanel. Olivier Rousteing (da Balmain), Clare Waight Keller (então na Chloé) e Riccardo Tisci (então na Givenchy) estavam na audiência.

Lady Gaga e Bruno Mars disputaram, a posição de atração musical. Os sutiãs de fantasia e as asas foram cobertos como se fossem verdadeiras notícias setoriais pela Harper’s Bazaar, Vogue e Elle (e, ocasionalmente, pelo The New York Times).

Modelo Adriana Lima no desfile da Victoria's Secret
Modelo Adriana Lima no desfile da Victoria's Secret - NYT

Em um momento em que as atrizes estavam em alta como estrelas nas capas de revistas de moda, ser “anjo” era um dos trabalhos mais cobiçados entre as modelos —e não só entre as modelos de lingerie ou da edição de praia da revista Sports Illustrated, mas entre aqueles que já tinham espaço confortável na capa da Vogue.

“Era altamente legítimo”, disse Ivan Bart, presidente da IMG Models and Fashion, agência que representava “anjos” como Bündchen e Kloss. “Uma modelo fazia um editorial de alta moda, desfiles de passarela, campanhas publicitárias —e posava para a Victoria’s Secret”.

Sim, mulheres realmente queriam caminhar por uma passarela parecendo o resultado do que teria acontecido em uma colisão entre o Garibaldo de Vila Sésamo e um bordel. E queriam mesmo ser conhecidas (ou no mínimo não se incomodavam em ser conhecidas) como “anjos”, termo inventado pela marca em 1997 e que agora parece absolutamente repelente, uma referência clara ao estereótipo de boas meninas que mostram seu lado mau na cama, tão querido da Playboy.

É uma figura alegórica que remonta a Stendhal e a “Ligações Perigosas”, e à bibliotecária que tira os óculos, solta os cabelos e mostra que na verdade é muito gostosa. E tudo isso ignora o grau de esforço necessário a desenvolver os corpos requeridos para participar de um desfile que muitas vezes portava semelhanças desconfortáveis com a pornografia leve.

Embora em determinado nível isso representasse apenas um novo capítulo na cultura das “pinups”, tal como definida por, e orientada aos, homens, o sucesso da Victoria’s Secret, inicialmente uma empresa que vendia por catálogo, também foi produto de diversos fenômenos culturais relacionados à fusão entre moda, entretenimento, sexo e kitsch, na virada do milênio.

Modelo Karlie Kloss
Modelo Karlie Kloss - NYT

De certa forma, os anjos da Victoria’s Secret eram parte da comercialização de um momento de confluência entre alta e baixa cultura que parecia definir o teor cultural do final do século 20, e continua forte em colaborações de toda espécie, ainda hoje.

Primeiro capturado por Kirk Varnedoe e Adam Gopnik em uma exposição (que rendeu um livro) no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1990, o espírito foi mais tarde apropriado por estilistas de moda como Tom Ford, cujo primeiro desfile de sucesso para a Gucci em 1996 casava a ironia do kitsch a materiais de luxo (alguém se lembra dos tamancos GG?), e a uma adesão escancarada à decadência do Studio 54.

Era um momento de exuberância absurdista que atraía os intelectuais com uma quedinha pelo pop, e também o mercado de massa. Mesmo a objetificação escancarada e a insensatez do desfile se coordenavam facilmente com a energia ao modo “Sex and the City” que permeava a cultura pop.

Em 2004, quando Paris Hilton provou que um vídeo de sexo pode servir como caminho para uma fama e carreira legítimas, já estávamos sendo condicionados a bisbilhotar nos quartos alheios, graças ao “Big Brother”, que estreou na rede de TV CBS no ano 2000.

E ao mesmo tempo a Victoria’s Secret compreendia o atrativo de uma marca pessoal, e chegou ao seu apogeu logo antes do Instagram, que transformaria a noção de fama. Ao dar o nome de “anjos” às suas modelos e promovê-las como pessoas e estrelas por direito próprio —ao treiná-las para lidar com a mídia, na prática—, a marca deu às modelos poder, destaque e segurança.

E tudo isso prometia servir como plataforma para o estágio seguinte de uma carreira, sem mencionar o fato de que facilitava a competição entre elas e as atrizes que cada vez mais ocupavam as capas das revistas de moda.

E a Victoria’s Secret pagava bem. Quando Bündchen deixou a companhia, em 2006, ela era a modelo mais bem paga do mundo, e disse ao site Refinery29 que a Victoria’s Secret respondia por 80% de sua renda. Pouco admira que as fileiras dos “anjos” tenham incluído Karen Mulder (a primeira dos “anjos”), Tyra Banks, Naomi Campbell e Miranda Kerr.

“Quando comecei”, disse Bart, “eu costumava encontrar jovens mulheres cujos sonhos ao assinar com a IMG eram chegar à capa de Vogue. Então, em algum momento dos anos 2000, o sonho passou a ser o de se tornarem modelos da Victoria’s Secret”.

Uma modelo com quem ele trabalhou, conta, abriu mão da oportunidade de participar de um importante desfile de prêt-à-porter em Milão porque tinha marcado uma sessão de fotos de cinco dias com a Victoria’s Secret.

Bella Hadid
Bella Hadid - NYT

Por volta de 2013, quando a WME, uma das maiores agências de talentos de Hollywood, adquiriu a IMG, que administrava talentos esportivo e da moda, parte do motivo era o que via como oportunidade de desenvolver a moda como entretenimento. Em 2015, seus executivos, Ari Emanuel e Mark Shapiro, assistiram da primeira fila o desfile da Victoria’s Secret, fazendo anotações.

O efeito obscureceu o lado sombrio da história: as dietas insanas (nenhum alimento sólido nos dias que antecediam o desfile) e os programas rigorosos de exercícios (pelo menos duas sessões diárias) pelos quais as modelos tinham de passar em busca do quase inatingível corpo perfeito. (E havia também a conexão com Jeffrey Epstein.) Isso tudo criou uma imagem nada realista do corpo feminino, em todo planeta.

E embora o período tenha acabado, isso não significa que a versão de “sexy” que a Victoria’s Secret representava tenha desaparecido inteiramente.

De fato, as performances caricatas de feminilidade exagerada que os “anjos” foram criados para personificar não subiram aos céus ou foram condenadas ao inferno, a depender de seu ponto de vista.

Elas continuam a existir, para todos os efeitos, entre as drag queens (que, de fato, podem ter sempre sido as antecedentes dos “anjos”), empacotadas para consumo popular e positivo na forma de programas como “RuPaul’s Drag Race”. E a força de caráter enfim ganhou lugar ao sol como forma poderosa de sedução. Uma forma de sedução que verdadeiramente tem asas.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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