Diversão
Descrição de chapéu Opinião - Vitor Moreno

Tomei nove doses de cachaça durante peça e nunca me diverti tanto assistindo a Shakespeare

Proposta do espetáculo 'Um Porre de Shakespeare', que está em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental, em SP, é ter sempre um ator bêbado em cena; aproveitei para me juntar a ele

O jornalista Vitor Moreno (ao centro) bebe dose de cachaça durante a peça 'Um Porre de Shakespeare' - Adriano Dória/Divulgação

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

"O que os deixou bêbados a mim fez corajosa", declara Lady Macbeth no que poderia ser a síntese da minha experiência assistindo ao espetáculo "Um Porre de Shakespeare", em cartaz desde o começo do mês no Teatro do Núcleo Experimental, em São Paulo.

No caso da ardilosa personagem, a coragem era para levar a cabo o plano que arquitetou junto ao marido para assassinar o rei e tomar seu posto. No meu caso, foi só para continuar virando doses de cachaça enquanto tentava me concentrar na peça e fazer anotações à meia luz para escrever um texto sobre ela.

Explico: "Um Porre de Shakespeare" mostra um grupo de seis apreciadores do dramaturgo William Shakespeare (1564-1616) que se reúne periodicamente na fictícia Sociedade Literária do Velho Bardo Bêbado para encenar textos do autor. Eles acreditam que a bebida funciona como um canal para aproximá-los do espírito do britânico, de modo que a cada noite um deles é sorteado para virar alguns shots no começo do espetáculo.

Só que de verdade, tá? A metalinguagem não está apenas no fato de que são pessoas encenando outras pessoas encenando a tragédia "Macbeth". O ator sorteado de fato tem que lidar com os neurônios encharcados de álcool para se lembrar das intrincadas falas e dos longos solilóquios que caracterizam o texto do autor.

Fascinado com a proposta, que surgiu em um espetáculo em Londres e ganhou versões de sucesso em outros países, fiquei cheio de dúvidas. Como isso pode dar certo, meu Deus? O ator não se atrapalha todo? Não tem medo de pagar mico na frente da plateia? Como deve ser trabalhar com umas doses de álcool turvando a mente?

Foi quando tive a ideia de assistir ao espetáculo tomando as mesmas doses que o ator sorteado para depois escrever como tinha sido a experiência. Falei com a produção da peça, que, para minha surpresa, achou o máximo. Sugeri à Folha, que, contrariando minhas expectativas (e me deixando em desespero), topou.

Vale fazer uma ressalva aqui: sou muito fraco para bebida. Sou desses que, quando algum médico pergunta sobre os meus hábitos, responde que bebe socialmente (mas no meu caso não é caô). É bem de vez em quando mesmo e, desde que saí da casa dos 20 anos, em quantidades cada vez mais moderadas.

É por isso que cheguei apreensivo para assistir à peça. Quando entrei no teatro, o principal objetivo era não vomitar em ninguém e, se possível, não causar a ponto de tumultuar a peça. Spoiler: não causei.

Até aquele momento, eu não sabia nem que tipo de bebida eu iria tomar. Fiquei sentadinho em uma mesinha próxima de uma das pontas (além dos lugares normais, existe essa opção —ou você pode ainda ficar nos tronos do rei e da rainha, o que exige boa disposição de interagir com o elenco durante o espetáculo), aguardando orientações da produção.

Começa a peça e, já nos minutos iniciais, ocorre o sorteio do ator bebum. O contemplado foi Rodrigo Caetano, que naquela noite fazia os papéis de bruxa, assassino, criada e Malcom (a cada apresentação, os atores também se revezam nos papéis). Uma bandeja com seis pequenos cálices de metal é trazida e, naquele momento, descubro que também farei parte da peça.

Para comprovar que o que havia nos recipientes era, de fato, bebida alcoólica, sou chamado para escolher um copo aleatório e virar meu primeiro shot ali, na frente de todos. Lá se foi minha esperança de ir tomando o líquido aos poucos, com pequenos e pausados goles. Foi tudo de uma vez, rasgando a garganta. Ao menos, recebi aplausos.

Para as demais doses, fiquei com uma garrafa na mesa. Eu mesmo abastecia o cálice quando via o ator entornando o dele.

Inocente, no começo lutei para me concentrar no texto que os atores estavam interpretando, o que foi uma tarefa inútil. "Não consigo entender nada", anotei no meu bloquinho. Em outro momento, os garranchos tinham coisas desconexas como "uón uón luz adaga", que eu não faço ideia do que estavam querendo relatar.

Foi quando decidi apenas relaxar e aproveitar o momento (afinal, acho improvável que eu seja novamente pago para beber enquanto trabalho). Rapidamente, percebi que a tragédia que estava sendo encenada em tom de humor era só um pretexto e que o espetáculo é um grande (e divertido) exercício de estar presente, com tudo o que isso representa.

Ao todo, tomei 9 shots de cachaça naquela noite. Confesso que, lá pelas tantas, as minhas doses foram ficando cada vez menores, de modo inversamente proporcional às caretas que eu fazia e às lágrimas que teimavam em encher meus olhos cada vez que tomava uma delas.

Já Rodrigo Caetano parecia bem até metade da peça. O ator continuava pedindo mais doses, certo de que o texto sairia com mais facilidade. Até que as falas começaram a sumir da mente e ele começou a dar um ou outro tropeção em parte do mobiliário de cena.

Cada pequena gafe arrancava risadas da plateia (as minhas talvez estivessem um pouco fora de hora, desculpem). O resto do elenco estava sempre pronto para ajudar o colega bêbado a lembrar o que tinha que dizer, mas também para potencializar as situações cômicas que aquela situação gerava.

"O que está fora de ordem?", perguntou Rodrigo em uma de suas falas. "Você está", respondeu outro ator, com uma sagacidade que quase não parecia ter sido improvisada na hora.

No final, nem precisava de tanto álcool para apreciar o ótimo espetáculo.

"UM PORRE DE SHAKESPEARE"

Avaliação:
  • Quando: Sábados, segundas e terças, às 20h; e domingos, às 18h
  • Onde: Teatro Núcleo Experimental
  • Preço: De R$30 (meia) a R$120
  • Classificação: 18 anos
  • Elenco: Bruna Guerin, Fabiana Tolentino, Luciana Ramanzini, Cleomácio Inácio, Dennis Pinheiro, Gabriel Lodi e Rodrigo Caetano
  • Direção: Zé Henrique de Paula