X de Sexo Por Bruna Maia
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Tendência da 'esposa tradicional' é softporn para misóginos e propaganda de submissão

Porém, antes de condenar as tradwives, convém se perguntar se você é tão diferente delas

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Será que você, leitora moderna e descolada, não age como uma esposa dos anos 50? - Reprodução

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Uma vez passou o vídeo de uma loira platinada peituda de vestido godê falando com voz melíflua e mostrando um bolo de carne. Pensei se tratar de um revival do visual pin-up que era hit no início dos anos 2000. Mas fui olhar com calma e percebi que o buraco era mais embaixo e que aquele conteúdo tinha dois objetivos: pornografia e propaganda.

Percebi também que não tem jeito, a moda dos anos 50, que era tão cool entre jovens cinéfilos viciados em nouvelle vague, foi apropriada pelo modo de vida evangélico.Esse vídeo era um de vários que trazem um tipo de conteúdo nomeado tradwife (esposa tradicional) em que mulheres de beleza padrão e roupas sexies, porém recatadas, ensinam a cuidar da casa.

Manual da esposa pós-moderna - Reprodução

Uma delas é uma morena com porte de modelo e com um falar tão sussurrado e lânguido que lembra um ASMR (voz que provoca sensação agradável de formigamento na cabeça e ombros), está sempre fazendo receitas complicadas com unhas impecáveis pintadas de cor clarinha para receber visitas ou agradar seu marido.

É tudo milimetricamente pensado para criar e alimentar o desejo de ser cuidado por uma mulher bonita, dedicada ao lar e sem nenhuma outra ocupação na vida além de fazer um homem feliz. É assim que os movimentos misóginos que infestam a internet, como red pills e incels, acham que as mulheres deveriam ser: empregadas servis e não remuneradas.

Aposto que eles devem tocar muita punheta consumindo esse tipo de conteúdo que se assemelha a um pornô com história. Tem narrativa, sugestões e símbolos capazes de fazer a imaginação pouco fértil desses rapazes sonhar com o dia em que uma impressora 3D vai criar uma humana programada só para agradá-los.

Ela vai estar sempre impecável e acordá-los com um boquete seguido de toddynho, torradas com bacon e ovos mexidos. De alguma maneira mágica, ela também vai pagar metade das contas.

Sim, porque tem isso, né? Eles querem ter a esposa ideal não feminista de antigamente, mas querem manter um "avanço" feminista muito conveniente que é da divisão das contas. Enquanto esse dia não chega, eles ficam na internet xingando mulheres e reclamando que nenhuma quer ficar com eles (por que será?).

Além de seduzir rapazolas e homens de meia idade frustrados com a decadência da masculinidade, esse conteúdo também tem um viés altamente propagandístico. Querem vender a ideia de que a felicidade feminina e masculina se dá nos velhos padrões de gênero e na domesticação das mulheres.

Servem ao propósito de manter ou reconstruir um ideal de família higienista e cristão, baseado na submissão e no trabalho gratuito e invisível das mulheres, disfarçado com a máscara de "amor". É irônico, tendo em vista que as influencers que produzem esses conteúdos são muito bem remuneradas.

Mas agora eu dirijo a palavra para você, leitora moderna e descolada que está chocadíssima com a tendência tradwife. Será que você é tão diferente assim? Nos seus relacionamentos, você desconstrói a lógica de que cuidado é função feminina ou passa o tempo todo paparicando seu marido disfuncional incapaz de preparar a própria mala para uma viagem de fim de semana?

É você quem sempre tem que garantir que não vá faltar sabão em pó para os lençóis do casal, lençóis esses que só você troca? Por acaso você não está pagando sessões de terapia para elaborar os problemas dele? E você, leitor homem. Será que você é tão diferente do incel?

Em 2018 eu criei um zine independente em quadrinhos chamado Manual da Esposa Pós-moderna (a versão impressa esgotou, mas o ebook está disponível). Nele, eu apontava justamente que muitas mulheres supostamente empoderadas continuavam agindo como donas de casa dóceis, servis e com uma sexualidade construída para agradar o homem.

Muita gente se identificou ou identificou amigas e colegas. As situações que eu descrevia diferiam muito pouco das tradwives.

Que os incels e redpills se excitem com a submissão femininas me preocupa menos que o fato de que muitas de nós seguimos capitulando –e nos vemos exaustas sem saber por quê.