Deepfake de Mel Maia escancara a distopia tecnológica que cerca as mulheres
Era de exposição sem precedentes se junta à misoginia e à dupla moral sexual
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Faculdade de comunicação da UFRGS em 2006: o sacrifício que era fazer o curta da disciplina de fundamentos de vídeo! A gente adorava. Uns se sentiam o próprio Stanley Kubrick. Eu queria ser a Uma Thurman. Mas era complicado manejar aquelas câmeras, comprar as fitas, lidar com os softwares de edição, organizar festivais universitários para que aquelas pérolas tivessem a chance de serem vistas.
Hoje em dia, um bom Iphone faz um longa, facilmente compartilhável na rede. O resultado são muitos e muitos vídeos, em vários ângulos, disponíveis online. E nem precisa ter pretensões de cineasta, qualquer refeição pode ser midiatizada. Óbvio que isso iria resultar em pornografia ilegal. A atriz Mel Maia foi uma recente vítima disso, mas é possível que venha a ser eu, ou você, ou sua sobrinha de 10 anos.
No caso de Mel, circulou nas redes um vídeo em que ela fazia sexo oral no chefe do tráfico da facção Comando Vermelho. A atriz disse que era uma fraude, e dois peritos apontaram à Folha diversos indícios de que se tratava de um deepfake. Nessa tecnologia, as feições de uma pessoa podem ser coladas sobre outro corpo, por exemplo, e manipuladas para se movimentarem ou falarem.
Assim, quem nunca sequer gravou vídeos íntimos amadores pode se tornar uma estrela da pornografia de forma completamente não consentida. Mais uma vez, a tecnologia virou uma arma de objetificação e extorsão e, para surpresa de ninguém, a maioria das vítimas são mulheres e meninas.
Vídeos e fotos falsificadas podem servir aos mais asquerosos propósitos. Desde saciar um fetiche do criminoso até a exposição para humilhar a vítima. Eles também são um veículo de vingança ou de sextortion, em que, para conseguir dinheiro ou favores, uma pessoa chantageia a outra ameaçando vazar as imagens. É mais ou menos como já faziam com vídeos e fotos reais, mas sem sequer ter a possibilidade de fuga por meio da abstinência de selfies e nudes.
A resposta óbvia dos conservadores é dizer para as mulheres se cuidarem, não postarem fotos, nem vídeos, não fazerem nada que enseje uma captura de seus rostos. Mas a verdade é que nem assim teríamos como escapar, considerando que todo lugar pode ter uma câmera. Quem sabe se a gente usar uma burca e parar até mesmo de ir à escola? Sim, porque isso acontece entre colegas de colégio. No ano passado, alunas do Colégio Santo Agostinho do Rio de Janeiro foram vítimas do vazamento de nudes falsos.
Para além da perversão e do crime sexual, fica evidente o uso da tecnologia como ferramenta de opressão de gênero. Vivemos em uma sociedade de dupla moral, em que a promiscuidade do homem heterossexual cis é celebrada ao passo que a fruição sexual das mulheres é combatida. A lógica colegial (que se estende ao longo da vida) de chamar o menino que beija todas de garanhão e a menina que beija metade do número de pessoas que ele beijou de vagabunda é um exemplo disso.
Num ambiente desses, exibir imagens de mulheres fazendo sexo real ou imaginado é algo que as degrada e rebaixa. Sendo assim, o deepfake é mais uma maneira de exercer controle sobre a sexualidade feminina. Se antes valia a máxima de que era melhor a gente não transar para não ser vista como piranha, passa a valer a de que não importa muito o que a gente faça ou deixa de fazer, quem sabe usar a tecnologia tem o poder de nos colocar nesse lugar.
Evidentemente qualquer forma de solução ou mitigação do problema passa por investigar e punir quem comete esse e outros crimes sexuais. Mas, para além disso, temos que lutar para não deixar a dupla moral perdurar. Ser piranha não é defeito, ser criminoso sexual é.