Tony Goes

Atacada em 2012 depois de seu último show, Rita Lee morreu como unanimidade nacional

Nossa maior cantora pop também foi a primeira mulher a cantar o sexo

A cantora Rita Lee - Roberto de Carvalho/Divulgação

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São Paulo

Rita Lee anunciou que o show que faria em Aracaju, no dia 28 de janeiro de 2012, seria o último de sua carreira. Com apenas 64 anos, a rainha do rock brasileiro se aposentava dos palcos –"da música, nunca", assegurou ela. O que Rita não previu foi que, terminado o espetáculo, ela e seu marido Roberto de Carvalho seriam presos por desacato a autoridade.

Foi uma despedida condizente com a agenda libertária que Rita Lee defendeu ao longo de toda sua vida. Ao perceber que policiais reprimiam com violência alguns espectadores flagrados fumando maconha, a cantora e compositora não se conteve: xingou os agentes da lei de "cachorros", "cavalos" e "filhos da puta". Levada para uma delegacia e liberada logo depois, garantiu que não retirava uma única palavra que tinha dito durante a apresentação.

Se o episódio em si já era algo assustador, pior ainda foi a reação de muitos internautas. Rita foi massacrada nas redes sociais. Foi chamada de criminosa e incitadora à desordem pública, e até mesmo comparada a assassinos e pedófilos.

Na época, escrevi aqui no F5 que esse imbróglio sergipano era mais um sinal do processo de "encaretação" do Brasil. Toda uma geração já não reconhecia mais Rita Lee como a arauta de uma era de liberdade e prazer, mas sim como uma criatura demoníaca disposta a destruir a moral e os bons costumes. Terminei o texto dizendo que tinha muito medo do país caretão que estava surgindo. Eu nem imaginava o que ainda estava por vir.

Nos anos seguintes, Rita se recolheu. Seu último álbum de estúdio, "Reza", foi lançado ainda em 2012. Depois, ela publicou alguns livros infantis e, em 2016, uma ótima autobiografia. Um segundo volume autobiográfico, "Outra Autobiografia", sai no próximo dia 22 de maio. No novo livro, ela foca sua luta contra o câncer.

Sua última faixa inédita, "Change", em parceria com Roberto de Carvalho e Gui Boratto, saiu no final de 2021, meses depois de ela mesma divulgar ter recebido diagnóstico de câncer no pulmão.

Desde o anúncio da doença, Rita não foi mais vista em público. Vivendo num sítio próximo à capital paulista, ainda assim ela não desapareceu por completo. Volta e meia, ela ou Roberto publicavam fotos no Instagram.

No último dia 31 de dezembro, data de seu aniversário, interagiu naquela rede com fãs que a parabenizavam. Um deles a pediu em casamento, e Rita mostrou na resposta que sua irreverência continuava intacta: "Você tem dinheiro?".

A essa altura já estávamos todos aliviados, pois em abril de 2022, Rita contou que seu câncer –que ela "carinhosamente" apelidou de Jair– estava em remissão. Infelizmente, seu quadro de saúde acabou se agravando, e ela nos deixou nesta segunda (8).

Não é possível medir a contribuição de Rita Lee para a cultura do Brasil. Ela foi muito mais do que a figura de proa do rock nacional. Foi nossa maior cantora pop, sem jamais ter tido uma grande voz. Foi também a primeira brasileira a escrever e cantar letras sobre o prazer do sexo. Antes, as nossas raras mulheres compositoras só tratavam do amor. Rita foi a pioneira em falar da cama de um ponto de vista feminino, em hits como "Mania de Você" ou "Lança-Perfume".

Ela também era extraordinariamente sincera, e jamais se fez de coitadinha. Ao contrário: assumiu de frente as muitas burradas que cometeu. Em seu livro autobiográfico, chega a ser chocante ler que, em meados da década de 1980, no auge do sucesso, casada com o grande amor de sua vida e mãe de três filhos pequenos, Rita mergulhou tão fundo nas drogas que precisou passar um tempo longe da família.

Mas, se entrou em todas, ela também saiu de todas e sempre de cabeça erguida. Depois de muitos entreveros com a polícia, Rita já não consumia nada ilícito há muito tempo. Nos últimos anos, viveu cercada de netos, bichos e plantas.

A reação à sua morte contrasta com aquela ao seu derradeiro show, 11 anos atrás. Rita se foi no momento em que o Brasil finalmente parece estar se desencaretando. Pelos comentários na internet, ela havia se tornado uma unanimidade nacional. Muitos choram como se tivessem perdido uma amiga pessoal ou alguém da família. Nem era para menos: depois de tantas décadas de convivência, Rita Lee, uma das maiores figuras brasileiras da segunda metade do século 20, era parte inextricável da vida de milhões de pessoas.