Tony Goes

Xuxa compra uma briga inútil ao dizer que a Bíblia precisa ser reescrita

Apesar de suas boas intenções, apresentadora dá munição aos homofóbicos

A apresentadora Xuxa Meneghel - Disney+/Divulgação

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São Paulo

Depois de algumas décadas sendo vista como o ápice da alienação, Xuxa Meneghel se tornou uma das vozes mais lúcidas e combativas deste país. A maturidade abriu os olhos da apresentadora, que passou a defender causas como o combate ao assédio sexual, a proteção aos animais e a própria democracia.

Mesmo assim, de vez em quando Xuxa se embanana. Em março de 2021, ela escandalizou muita gente ao sugerir que presos poderiam servir de cobaias para testes científicos. Durante uma live no Instagram, disse que "existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas, que estão aí pagando seus erros num ad eternum, para sempre em prisão, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos, sabe?". O mundo veio abaixo, e Xuxa não demorou a pedir desculpas.

Agora ela se mete numa nova polêmica, ainda que com as melhores intenções. Xuxa mergulhou no universo LGBTQIA+ ao comandar o reality "Caravana das Drags", da Amazon Prime Video, e incorporou os direitos igualitários às pautas que defende.

Imbuída desse espírito, ela reagiu ao pastor Silas Malafaia, que publicou um vídeo no Twitter citando quem, segundo a Bíblia, irá para o inferno. A lista, tirada da carta de São Paulo aos coríntios, inclui devassos, idólatras, adúlteros, efeminados e sodomitas (antiga denominação dos homossexuais).

Indignada, a apresentadora respondeu em seu perfil no Instagram: "Hipocrisia isso se chama... NINGUÉM pode julgar ninguém... E se seguirmos a Bíblia... vamos apedrejar, matar, tanta gente... sei lá... tá na hora de reescrever a Bíblia (velho testamento, Bíblia e a palavra final, cheia de amor, e tirar todo ódio nessas palavras na Bíblia)".

Além de dar a Malafaia uma repercussão que ele não merecia, Xuxa deu munição aos homofóbicos de plantão, que correram a atacá-la nas redes sociais. Todos posando de cristãos exemplares e ignorando a mensagem básica do cristianismo, sendo o amor ao próximo.

Há quem creia que todos os livros da Bíblia foram escritos por direta inspiração divina e que tudo que está neles corresponde à mais absoluta verdade literal. A realidade histórica é um pouco mais complexa.

Os livros do Antigo Testamento foram escritos por diversos autores ao longo de 13 séculos e se dirigem a um público bastante específico: os judeus, um pequeno povo do Oriente Médio quem, até o século 1 da nossa era, vivia acossado por impérios poderosos, como o egípcio, o babilônio, o persa e o romano.

Já o Novo Testamento começou a ser escrito cerca de 30 anos depois da morte de Jesus Cristo. Os quatro evangelhos "oficiais" contêm dezenas de discrepâncias entre si. Muitos outros evangelhos não foram reconhecidos pela Igreja Católica e hoje são chamados de apócrifos.

O livro do Antigo Testamento que condena a homossexualidade é o Levítico, que estabelece uma série de regras de conduta. Entre elas estão as proibições do consumo de carne de porco e de crustáceos, e do uso de roupas feitas com tecidos diferentes. Curiosamente, quem usa o Levítico para atacar os gays costuma ignorar essas outras normas.

O fato é que é impossível seguir todos os preceitos bíblicos. O americano A. J. Jacobs tentou fazer isto por um ano, e contou sua experiência no livro "The Year of Living Biblically" (o ano em que vivi biblicamente, em tradução livre). Ele logo percebeu que os fundamentalistas simplesmente escolhem as regras que acham que todos devem seguir, deixando de lado dezenas de outras.

Para um não-crente, a Bíblia é um documento histórico inestimável, mas não um manual de comportamento. Mas para os crentes ela é a palavra de Deus, e sugerir que precise ser reescrita é uma blasfêmia.

Ou seja: Xuxa não foi só blasfema, como também algo inocente ao sugerir algo tão radical. Virou ela mesma alvo dos reacionários e ainda comprou uma briga inútil, apesar de suas maravilhosas intenções.

Ela precisa lembrar que vive num país em que um deputado baiano apresentou um projeto de lei que não só proibia qualquer alteração ao texto bíblico como criminalizava o uso da palavra "bíblia" fora do contexto religioso. Quase foi aprovado pela Câmara. É a velha história: os defensores do patriarcado nunca hesitaram em manipular a fé para manter a opressão às minorias.