Repertório de Clara Nunes causaria escândalo nos dias de hoje
Músicas da cantora morta há 40 anos tinham forte influência do candomblé
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"Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar / Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar..."
Assim começa "A Deusa dos Orixás", um dos muitos sucessos da carreira de Clara Nunes. Também era uma das várias canções de seu repertório com letras fortemente influenciadas pelo candomblé e pela umbanda, que essa mineira de Paraopeba (atual Caetanópolis) conheceu depois que se mudou para o Rio de Janeiro.
Elementos das religiões de matriz africana são citados explicitamente em faixas como "Banho de Manjericão", "Ijexá", "Tributo aos Orixás" e "As Forças da Natureza". Embora mais mundanas, canções como "Conto de Areia" e "O Mar Serenou" também ostentam o mesmo DNA.
Não era só no repertório que Clara Nunes evocava o candomblé. O visual comportado do início de sua trajetória, nos anos 1960, foi evoluindo a ponto de, no final da década seguinte, Clara ter praticamente se transformado numa sacerdotisa do samba, sempre vestida de branco e com adereços nos cabelos que lhe davam um ar de entidade mística.
A cantora morreu no dia 2 de abril de 1983, depois de permanecer em coma por 28 dias, devido a complicações de uma banal cirurgia para a retirada de varizes. O Brasil entrou num choque só comparável ao causado pela morte de Elis Regina, ocorrida um ano antes. Ambas eram grandes estrelas da nossa música, ambas se foram jovens demais.
As quatro décadas sem Clara Nunes vêm sendo marcadas por reportagens na imprensa. A Folha publicou uma matéria abrangente sobre sua carreira. No Fantástico deste domingo (2), o cirurgião Antônio Vieira de Melo contou detalhes sobre a desproporcional reação que a artista apresentou à anestesia, que acabou levando ao seu falecimento.
Clara Nunes era praticamente uma unanimidade no Brasil de 40 anos atrás. Hoje seria polarizadora, por causa do repertório impregnado de umbanda e candomblé. Não duvido que viesse a ser alvo de boicotes e ataques se insistisse em cantar a glória dos orixás.
Convém lembrar que não era só ela. A música brasileira da década de 1970 mergulhou sem medo nas tradições africanas, numa época em que as igrejas evangélicas tinham uma fração do poder que têm hoje.
Maria Bethânia e Gal Costa celebravam Mãe Menininha do Gantois, uma das mais célebres ialorixás da Bahia. Em parceria com Baden Powell, Vinicius de Moraes compôs uma série de chamados "afrosambas", como "Canto de Ossanha". Até mesmo Ronnie Von seguiu por essa trilha, abalando sua imagem de príncipe da Jovem Guarda com o hit "Cavaleiro de Aruanda".
Isso não quer dizer que as religiões de matriz africana fossem plenamente aceitas naquela época. Não havia notícias de atentados a terreiros, tão comuns hoje em dia, mas a ignorância e o preconceito impediam que elas fossem totalmente integradas ao "mainstream" da cultura brasileira.
Mesmo assim, a presença do candomblé e da umbanda na mídia era maior do que atualmente e ainda não existiam vereadores histéricos querendo remover estátuas de Iemanjá de espaços públicos.
O fato é que, com o avanço do neopentecostalismo, o Brasil encaretou. O pior é que também ficou muito mais intolerante com a diversidade, quando não escancaradamente racista.
Clara Nunes, que cantava a fé em deuses negros e celebrava a união das três raças que formaram o Brasil –um conceito não muito acurado do ponto de vista científico, mas de fácil compreensão–, talvez não fosse hoje a superstar que foi há 40 anos. O que seria uma pena, dada sua simpatia, seu carisma e a extensão de sua voz.
O Brasil de 2023 convive numa boa com a pornografia de MC Pipokinha, mas não suporta a liberdade religiosa. Vamos ver se o Ministério da Cultura, agora comandado pela cantora Margareth Menezes, ajudará a reverter esta situação.