Personagens complexos fazem de 'Treta' mais que uma comédia sobre vingança
Minissérie da Netflix já está entre os melhores programas do ano
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Quem nunca perdeu as estribeiras numa discussão no trânsito? Essas brigas bobas servem de pretexto para darmos vazão a tensões reprimidas, descarregando no outro motorista a raiva que sentimos por outra razão qualquer.
O potencial tragicômico desses embates foi percebido há muito tempo pelo cinema, e já rendeu filmes como "Um Dia de Fúria" e "Relatos Selvagens".
Agora é o streaming que usa uma briga de trânsito como ponto de partida para uma ótima minissérie: "Treta", disponível na Netflix desde o dia 6 de abril. Os 10 episódios, com pouco mais de meia hora cada um, foram produzidos pelo A24, o mesmo estúdio independente responsável por "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", o grande vencedor do último Oscar.
(Para quem ainda não assistiu, atenção, daqui para baixo alguns spoilers)
A ação se passa em Los Angeles, e os dois protagonistas são de origem oriental. Daniel, filho de coreanos, é um empreiteiro à beira da falência, sem dinheiro nem perspectivas. É interpretado por Steve Yeun, indicado ao Oscar de melhor ator em 2021 pelo filme "Minari". Amy, vivida pela comediante Ali Wong, vem de uma família chinesa e dedica tanta energia à sua sofisticada loja de plantas que seu marido e sua filha pequena já estão se ressentindo.
Os dois se cruzam no estacionamento de uma megaloja. Daniel sai de uma vaga em marcha à ré e sua pick-up quase bate no luxuoso SUV dirigido por Amy. Os dois trocam palavrões e gestos obscenos e iniciam uma perseguição cômica por um bairro elegante, destruindo um jardim no caminho.
Ninguém sofre um arranhão sequer –nem os humanos, nem seus carros. Mas o entrevero é o bastante para que uma semente de ódio germine no coração de Daniel. Ele descobre o endereço de Amy, consegue ser recebido sem que ela desconfie de quem se trata e se vinga fazendo uma sujeirada no lavabo da empresária.
"Treta" poderia facilmente descambar para a caricatura fácil, com seus personagens agindo segundo a lógica dos desenhos animados. Mas a série vai muito além disso, mergulhando nas complexidades de Amy e Daniel.
Ele se aproxima do marido dela, um artista de origem japonesa, e os dois se tornam confidentes. Ela adota uma identidade falsa no Instagram para seduzir o irmão dele e acaba ela mesma tendo um caso com o rapaz.
Para complicar, Daniel ainda tem um primo recém-saído da cadeia, mas que já está planejando seu próximo golpe. E Amy precisa lidar com a sogra, não exatamente uma aliada, e com a bilionária fútil que pretende comprar sua loja.
Os dois sofrem pressões por todos os lados. Pode-se dizer que ambos ficaram aquém das expectativas de seus pais, algo grave na cultura oriental. Mas não é preciso ter raízes asiáticas para nos identificarmos com eles. Todos nós enfrentamos problemas parecidos no dia a dia, em maior ou menor grau.
Todos os títulos dos episódios de "Treta" vêm de citações de autores como Franz Kafka, Joseph Campbell e Simone de Beauvoir e aparecem sobrepostos a telas de David Choe, o ator que encarna Isaac, o primo bandido de Daniel. Esses detalhes dão um toque de sofisticação a uma história que vai se tornando cada vez mais angustiante, sem jamais perder o senso de humor.
Steve Yeun e Ali Wong estão fantásticos em seus papéis. Outro destaque do elenco vai para Maria Bello, a ricaça que quer fazer negócios com Amy. O público da Netflix também vai gostar de ver Ashley Park, a Mindy de "Emily in Paris".
"Treta" poderia ser um pouco mais curta, e os dois últimos episódios, focados no confronto final entre os dois protagonistas, destoa um pouco do tom galhofeiro dos demais. Mas roteiro, direção e atuações fazem com que, desde já, a série garanta um lugar entre as melhores do ano.