Aparência comum e personalidade indefinida explicam popularidade de Elizabeth 2ª
A rainha era uma tela em branco, em que projetávamos nossas idiossincrasias
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A morte da rainha Elizabeth 2ª causou comoção no mundo inteiro. Tão grande, aliás, que pareceu exagerada para alguns. Afinal, a monarca britânica não exercia nenhum poder verdadeiro, nem tinha sua figura associada a nenhuma causa específica.
Mesmo assim, Elizabeth 2ª manteve-se extremamente popular durante quase todo seu longo reinado, de pouco mais de 70 anos. Houve apenas dois momentos em que sua imagem periclitou: o desastre de Aberfan, em 1966, quando uma escola no País de Gales foi atingida por um deslizamento, e a morte da princesa Diana, em 1997. Em ambos os casos, a rainha demorou a reagir à altura do que seus súditos esperavam.
Mas esta inércia da soberana também ajuda a explicar por que ela era tão querida. Elizabeth 2ª não se manifestava sobre nada. Não dava opiniões, não comentava sobre os filmes a cujas pré-estreias comparecia, não divulgava a playlist dos hits que andava ouvindo.
Até seus gostos pessoais eram cercados de mistério. Sabemos por terceiros que ela apreciava tomar um gim tônica ao cair da tarde. A própria rainha jamais declarou suas preferências.
A persona pública de Elizabeth 2ª era uma tela em branco. Podíamos projetar nela o que quiséssemos, e criar uma rainha de acordo com nossos caprichos e idiossincrasias. Ela era uma vovó simpática para muita gente. Para outros tantos, a encarnação de valores do Reino Unido, como perseverança e coragem.
Agora que ela se foi, vêm surgindo vozes que a acusam de ter sido racista e imperialista, confundindo a pessoa com a instituição e ignorando a marcha da história. É mais ou menos como culpar o papa Francisco pela Inquisição.
Elizabeth 2ª, na verdade, reinou durante o desmantelamento do Império Britânico. E entrou em rota de colisão com a então primeira-ministra Margaret Thatcher, em 1986, quando o Reino Unido se recusou a aplicar sanções contra a África do Sul por causa do regime do apartheid. Tudo nos bastidores, é claro: em público, Sua Majestade jamais se posicionou a respeito de nada.
A rainha também tinha a genética a seu favor. Herdou da mãe duas características inestimáveis: a longevidade e a aparência comum, bem pouco aristocrática.
Elizabeth Bowes-Lyon, que ficou mais conhecida como a Rainha-Mãe, viveu até os 101 anos de idade, gozando de todas as faculdades físicas e mentais. Também tinha o que seu cunhado Edward, que renunciou ao trono para se casar com a americana Wallis Simpson, chamava de "cara de cozinheira": um ar plebeu, de pessoa do povo, bem diferente da arrogância inatingível de sua sogra, a rainha Mary.
Ela e sua filha pareciam "gente como a gente", mesmo tendo nascido, vivido e morrido no mais alto escalão da nobreza britânica. Elizabeth 2ª, quando aparecia vestida com roupas do dia a dia, lembrava uma dona de casa de classe média indo fazer compras no verdureiro. Nada mais distante da realidade, é claro, mas impressões visuais têm poder subliminar.
Além da personalidade opaca e da aparência plebeia, há outro fator que explica o sucesso de Elizabeth 2ª: sua absoluta dedicação ao cargo. A rainha tinha um exaltado senso de dever, e se submetia a todos os compromissos que lhe eram exigidos: viagens, recepções, inaugurações, vídeos com Paddington ou James Bond.
Pobre Charles 3º. O novo rei, que sobe ao trono carregando uma bagagem considerável e uma popularidade bem inferior à da mãe, tem uma missão impossível de ser cumprida. Como se diz em inglês, ele precisa "preencher os sapatos" de sua antecessora, que exerceu com a maior graça possível uma das funções mais vigiadas e comentadas do planeta.
E, por melhor que se saia, dificilmente será conhecido apenas como "o rei". Já quando falávamos "a rainha", todo mundo sabia de quem se tratava.