Sem querer, série 'Expresso do Amanhã' virou uma alegoria precisa da quarentena
Primeira temporada está disponível na Netflix
A primeira encarnação de “Expresso do Amanhã” foi como uma graphic novel, de autoria dos franceses Jacques Lob e Jean-Marc Rochette, lançada em 1982. Seguiram-se três outros volumes, com outros roteiristas substituindo Lob. O último chegou às livrarias em 2015.
Antes disso, a história do trem que roda a Terra sem parar, depois que o planeta inteiro congelou, chegou às telas pelas mãos de ninguém menos do que Bong Joon-Ho, o diretor de “Parasita”. “Expresso do Amanhã” o filme, estreou em 2013 e tinha Chris Evans e Tilda Swinton nos papéis principais. Sem ser um estouro de bilheteria, o longa conquistou ótimas críticas, e já é quase considerado um clássico contemporâneo da ficção-científica.
Bong Joon-Ho também está por trás da série “Expresso do Amanhã”, cujos episódios finais da primeira temporada acabam de chegar à Netflix. O cineasta coreano é o produtor-executivo do programa, mas o showrunner –o profissional que lidera a equipe de roteiristas e participa da produção– é o canadense Graeme Manson, um dos criadores da série “Orphan Black”.
“Expresso do Amanhã” traz um assunto recorrente na filmografia de Bong Joon-Ho: a desigualdade social. O trem do título é um microcosmo da humanidade, com seus 1.001 vagões divididos em castas rígidas. Milionários que pagaram fortunas por suas passagens ocupam a luxuosa primeira classe. No fundo do comboio, passageiros clandestinos sobrevivem na mais absoluta miséria, e são explorados por todos os demais.
Quis o destino que a série estreasse num momento em que boa parte da população mundial está confinada em casa, por causa da pandemia. Assim, o que já era uma metáfora poderosa do desequilíbrio em que vivemos se transformou numa alegoria bastante precisa do mundo em 2020.
Quem for assistir esperando uma versão mais extensa do filme vai se decepcionar. Os personagens não são exatamente os mesmos. Uma das protagonistas, Melanie Cavill (Jennifer Connelly, mais magra do que nunca), é uma espécie de super-comissária de bordo, agindo com mão firme e métodos questionáveis para que o trem, literalmente, não descarrile. Tilda Swinton viveu um papel equivalente no cinema, mas muito mais caricato.
O outro protagonista, Andre Pleyton (Daveed Diggs), é um ex-policial do fundão que acaba se tornando o líder de uma revolta –um pouco como Chris Evans no filme, mas não exatamente igual.
A premissa geral, no entanto, continua a mesma. É meio absurda, mas eficaz: o aquecimento global fez com que o nosso planeta esquentasse demais. Os esforços para resfriá-lo fugiram ao controle, e o resultado é que a Terra agora está toda coberta de neve, a uma temperatura média de 150 graus negativos.
Os poucos sobreviventes da catástrofe climática estão no quilométrico trem construído pelo misterioso sr. Wilford. Sempre citado e nunca visto, ele começa a ter sua própria existência questionada pelos passageiros. Mas surgirá no ano que vem: um teaser da segunda temporada mostra Sean Bean (“Game of Thrones”) encarnando o personagem.
O trem se move sem parar graças a um combustível eterno que nunca é explicado. O roteiro tampouco perde tempo detalhando como se dá a criação de animais a bordo (há vagões-estábulos) ou a produção de hortaliças.
Mas o que importa mesmo é o conflito entre as diversas classes, e é isto o que faz com que “Expresso do Amanhã” seja muito mais que um reles thriller. Muita politicagem, Alianças inesperadas, algumas traições e uma boa dose de violência seguram o interesse do espectador ao longo dos 10 episódios, que terminam com um gancho melodramático digno das melhores telenovelas.
É irresistível pensar que, aqui no Brasil, nós também estamos presos numa espécie de trem dividido em castas, enquanto o mundo lá fora está mais perigoso do que nunca. Só que, ao contrário dos passageiros de “Expresso do Amanhã”, não contamos com uma tripulação eficiente, e muito menos com um piloto.