Carnaval politizado vira batata quente para emissoras de TV
1ª noite das grandes escolas cariocas, comentaristas da Globo evitam críticas ao governo
Já se sabia que o Carnaval de 2020 viria carregado de críticas políticas e sociais. As letras dos sambas-enredo de várias escolas, divulgadas no final do ano passado, surgiram cheias de termos como “messias”, “fake news” e “intolerância”. Mesmo sem dar nome aos bois, elas deixam claro a quem se referem.
Na internet, surgiu até um movimento pedindo que política e Carnaval não se misturassem. Uma proposta ainda mais ridícula do que o “cancelamento” das fantasias de índio: quem acha que a política não tem vez nos festejos momescos confunde escola de samba com bandinha escolar.
Mas claro que essa ideia não vingou. Por todo o Brasil, foliões não vêm poupando farpas a todas as esferas governamentais. No Rio de Janeiro, a Acadêmicos Vigário Geral, escola do Grupo de Acesso, abriu seu desfile no sábado (22) com uma gigantesca escultura do palhaço Bozo portando a faixa presidencial e fazendo arminha com a mão (para quem não sabe, Bozo é um dos muitos apelidos derrogatórios de Jair Bolsonaro nas redes sociais).
O prefeito carioca Marcelo Crivella ameaçou multar os CPFs dos músicos que participassem de blocos “clandestinos” (sem autorização da prefeitura para desfilar). O resultado foi o bloco CPF do Crivella, que traz o número do CPF do alcaide em seu estandarte.
As escolas de São Paulo não ficaram atrás: a Vai-Vai homenageou Marielle Franco, e a Mancha Verde ironizou os ministros Paulo Guedes e Damares Alves.
Toda essa politização, explícita ou não, cria um problema para os canais de TV que cobrem o Carnaval. SBT, Band e Rede TV!, alinhadas com o governo, simplesmente evitam mostrar em suas telas qualquer coisa que cheire a protesto.
A Globo, que procura manter uma postura independente, enfrenta um dilema de bico. É simplesmente impossível transmitir os desfiles das escolas de samba sem exibir alegorias e passistas que criticam Bolsonaro e seu entorno. Para não antagonizar ainda mais um presidente que já a vê como inimiga, a emissora optou por um relativo silêncio.
Durante o desfile da Mangueira neste domingo (23), Alex Escobar, Fátima Bernardes e Milton Cunha fugiram o quanto puderam de abordar o enredo da escola, campeã do Carnaval carioca do ano passado. O samba já anunciava suas intenções no título: “A Verdade Vos Fará Livre”, uma alusão pouco disfarçada ao versículo bíblico “a verdade vos libertará” (João, 8:32), proferido a torto e a direito por Jair Bolsonaro.
Geralmente loquazes a ponto de irritar o espectador, os comentaristas da Globo deixaram passar batidos versos como "favela, pega a visão / não tem futuro sem partilha / nem messias de arma na mão”. E não deram trela para o ator Humberto Carrão, entrevistado depois de desfilar como um dos vários Cristos que a escola verde-e-rosa colocou na Sapucaí.
É verdade que nenhuma imagem foi censurada. Mas a cautela da Globo chamou a atenção do público –até porque, durante os desfiles menos politizados, os comentários incessantes chegaram a encobrir a batucada que vinha do asfalto.
Vem mais batata quente por aí. A primeira escola a desfilar na noite desta segunda (24) será a São Clemente, cujo samba-enredo tem entre seus autores o humorista Marcelo Adnet.
Vai ser interessante ver como os comentaristas da Globo lidarão com o fato de um contratado da casa ter colaborado com versos que dizem coisas como “Brasil, compartilhou, viralizou nem viu / e o país inteiro assim sambou / caiu na fake news”.