Tony Goes

'Suspenção' do especial do Porta dos Fundos exaltou meus ânimos

Desembargador do Rio de Janeiro usa argumento absurdo para pedir censura

Cena do especial de Natal do Porta dos Fundos "A Primeira Tentação de Cristo" - Divulgação

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
 
Essas belas palavras integram a Constituição Federal, promulgada em 1988 e até hoje em vigor. Por incrível que pareça, o desembargador Benedicto Abicair, da Justiça do Rio de Janeiro, não as conhece.

Nesta quarta (8), atuando como relator de um recurso movido pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, Abicair determinou que a Netflix retire de sua grade o especial de Natal do Porta dos Fundos de 2019, “A Primeira Tentação de Cristo”. O pedido já havia sido negado em primeira instância pelo desembargador de plantão.

“As consequências da divulgação e exibição da 'produção artística' (...) são mais passíveis de provocar danos mais graves e irreparáveis do que sua suspenção (sic), até porque o Natal de 2019 já foi comemorado por todos”, escreveu ele.

Isso mesmo: “suspenção” com C cedilha. Benedicto Abicair deve ter se formado na Academia de Letras Abraham Weintraub.

Mas o mais grave vem a seguir. “Por todo o exposto, se me aparenta, portanto, mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã, até que se julgue o mérito do Agravo, recorrer-se à cautela, para acalmar ânimos, pelo que concedo a liminar na forma requerida”.

Como assim, “acalmar ânimos”? Ânimos de quem? De Eduardo Fauzi, que atirou coquetéis molotov contra a fachada do prédio onde funciona a produtora do Porta dos Fundos e agora está na lista de alerta máximo da Interpol? Não sabia que a função da Justiça brasileira era tranquilizar terroristas.

Pois Abicair conseguiu exatamente oposto de seu proclamado intento. Meus ânimos estão exaltadíssimos com mais essa tentativa, nada velada, de restaurar a censura no Brasil.

Desde que chegaram ao governo federal e ao de diversos estados, grupos ultraconservadores vêm buscando proibir peças, tirar livros de circulação e impedir que filmes sejam feitos. Os argumentos vão da proteção aos menores de idade à pura e simples falta de verbas, mas não escondem a sanha autoritária– e inconstitucional– por trás desses arroubos.

Setores da sociedade vêm reagindo, e o próprio Supremo Tribunal Federal já entrou em campo para garantir nossas liberdades ameaçadas.

A ameaça surgiu mais uma vez nesta quarta (8), e atinge a todos nós. Sim, a todos, e não só a quem se sentiu ofendido pelo especial do Porta dos Fundos. Hoje é um programa de humor, amanhã pode ser uma letra de música ou um livro de História.

Ninguém –nem mesmo quem clama por “filtros” e controles– está a salvo da censura. Por isto, é dever de todos se exaltar contra ela.