Afinal, a Globo é contra ou a favor do beijo gay?
Emissora cortou cena de beijo entre mulheres, mas atacou a censura à Bienal do Livro
A Globo deu um azar histórico na quinta-feira passada (5). Na mesma noite em que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, divulgou um vídeo avisando que mandaria recolher a graphic novel “Vingadores: a Cruzada das Crianças” na Bienal do Livro por causa de um beijo entre dois rapazes, a emissora disponibilizou na plataforma Globoplay o capítulo da novela “Órfãos da Terra” sem o anunciado beijo entre Camila (Anajú Dorigon) e Valéria (Bia Arantes).
As personagens se beijariam depois de combinarem de se casar, conforme constava no resumo publicado no site da novela na semana anterior. A cena foi gravada, mas não editada. À imprensa, a Globo declarou que tomou uma “decisão puramente artística”, sem nenhum julgamento moral.
Uma decisão no mínimo estranha, pois até “Malhação” já exibiu um beijo entre dois rapazes. Há pouco mais de uma semana, “Bom Sucesso”, atração da emissora na faixa das 19 horas, também mostrou um beijo casual entre Pablo (Rafael Infante) e William (Diego Montez), e foi muito elogiada pela naturalidade da cena.
Quis o destino que o alcaide carioca, desesperado por um factoide que alavanque suas chances de reeleição em 2022, apelasse para uma suposta “defesa das crianças” em sua indisfarçável tentativa de censura. E aí, a Globo não titubeou: cobriu fartamente a repercussão negativa à jogada de Crivella. Em seus telejornais e no “Fantástico”, o canal estampou o beijo da HQ da Marvel – o mesmo que ocupou a histórica primeira página da Folha no sábado (7).
Uma atitude muito louvável, mas qual a coerência disso? A Globo defende a liberdade de expressão e faz questão de exibir em cadeia nacional o beijo que atiçou a ira do prefeito, mas exerce a autocensura em uma de suas novelas?
Basta lembrar da história para perceber que a relação da emissora com a representação da homossexualidade em sua dramaturgia sempre foi conflituosa. Até a primeira década deste século, gays e lésbicas mal apareciam nas novelas. O casal de mulheres formado por Christiane Torloni e Sílvia Pfeiffer em “Torre de Babel” (1995) precisou literalmente ir pelos ares, por causa da rejeição por parte do público.
Mas os autores insistiram, e os tempos foram mudando. O primeiro beijo entre rapazes em uma novela da Globo quase foi ao ar em 2005, em “América”. A cena com Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro chegou a ser gravada, editada e anunciada, mas acabou limada do capítulo que foi ao ar.
Exibida em 2011, a novela “Insensato Coração” tinha diversos personagens gays. Um deles chegava a morrer depois de ser espancado em um violentíssimo ataque homofóbico. Mas o beijo entre Hugo (Marcos Damigo) e Eduardo (Rodrigo Andrade), que assinaram um contrato de união civil no último capítulo, simplesmente não rolou.
A Globo sofreu pesadas críticas em ambos episódios. Em 2014, sentiu que era hora de mudar. Coube a Walcyr Carrasco – hoje justamente criticado pela história inverossímil e superficial de “A Dona do Pedaço” – tecer uma trama crível e delicada em “Amor à Vida”, mostrando o envolvimento gradual entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Tiago Fragoso). Quando os dois se beijaram no último capítulo, praticamente o Brasil inteiro torcia pelo casal.
De lá para cá, o beijo entre pessoas do mesmo sexo tornou-se frequente nas novelas e séries globais. Alguns não foram bem recebidos pela audiência: muita gente se chocou quando Fernanda Montenegro e Natália Thimberg se beijaram no primeiro capítulo de “Babilônia” (2015), provavelmente mais por causa da idade das atrizes do que por seu gênero.
É possível que a Globo tenha querido evitar polêmica ao cortar o beijo lésbico de “Órfãos da Terra”, em um momento em que a emissora é chamada de “globolixo” pelas hostes governistas nas redes sociais. Mas ela demonstrou coragem e determinação ao se posicionar claramente contra a censura no imbróglio da Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
E tem ótimas razões para isto. Os detratores da Globo costumam tratá-la como uma linha auxiliar na consolidação do regime militar (1964-1985), mas nenhuma outra emissora sofreu tanto nas mãos da censura. Duas novelas foram canceladas na véspera da estreia: “Roque Santeiro”, em 1975 (depois refeita e exibida em 1985) e “Despedida de Solteiro”, em 1976, com enorme prejuízo artístico e financeiro. Sem falar nas centenas de cortes a que outras obras foram submetidas, alguns por razões ridículas.
As trevas ameaçam engolfar o Brasil novamente, e a parte civilizada da sociedade precisa se unir para impedir este retrocesso. Portanto, é reconfortante saber que, apesar de ainda cometer deslizes aqui e ali, a Globo está do lado certo da história.