Série 'São Paulo Meu Humor' retrata a explosão dos quadrinhos paulistanos
A trajetória da Circo Editorial refletiu um período de mudanças profundas no país
Um novo Brasil estava surgindo no começo da década de 1980. O movimento pelas Diretas Já ganhava força, sinalizando o final iminente da ditadura militar. A abertura política e o abrandamento da censura faziam com que a cultura nacional fervilhasse. Filmes, peças e músicas, há muito proibidos, de repente saíam à luz do dia.
As charges e as histórias em quadrinhos não passaram incólumes por este autêntico renascimento. Dominado, desde meados dos anos 1960, pelos cartunistas que viviam no Rio de Janeiro, aglutinados em torno do jornal satírico “O Pasquim”, o gênero viu surgir uma nova vertente em São Paulo, capitaneada por nomes com Angeli, Glauco e Laerte.
Por trás deles estava um empresário apaixonado pelas HQs, Toninho Mendes (1954-2017). Toninho fundou a Circo Editorial, que publicava revistas como “Chiclete com Banana” e “Piratas do Tietê”. Sem nunca ter desenhado, ele se tornou uma figura fundamental para a explosão e a consolidação dos quadrinhos paulistanos.
Toninho Mendes também é o personagem central da série “São Paulo Meu Humor”, que estreia no canal Arte 1, nesta quinta-feira (20), às 20 horas. Ao longo de seis episódios, a história da Circo Editorial é contada em detalhes através de imagens de arquivo e novos depoimentos, formando um painel abrangente da inflexão cultural e política por que passava o Brasil há quase 40 anos.
O programa foi concebido pelo próprio Toninho, em parceira com Maria Clara Fernandez, a partir de seu livro “Humor Paulistano” (SESI/SP Editora). Sua morte prematura aos 62 anos não significou o fim do projeto, que foi encampado pela produtora Academia de Filmes e tocado pelo diretor Pedro Urizzi.
“Eu procurei respeitar as sinopses originais”, conta Urizzi, em entrevista por telefone. “Também quis prestar uma homenagem a Toninho Mendes, resgatando sua figura. Imagens dele, tiradas de fitas cedidas pelo jornalista Gonçalo Junior, abrem e fecham cada bloco de cada episódio da série”.
Nascidos em tirinhas publicadas pela Folha, personagens como Bob Cuspe, os Skrotinhos e Rê Bordosa, de Angeli, puderam se expandir nas páginas da revista “Chiclete com Banana”, que teve 25 números publicados pela Circo Editorial entre 1984 e 1990.
“Toninho dizia que a Circo só era viável sem censura, dentro de uma democracia”, continua Urizzi. “Eles queriam testar essa nova liberdade de expressão. Saber até onde dava para ir.”
De fato, coisas nunca vistas antes nos quadrinhos brasileiros –nem mesmo no iconoclástico “Fradim”, de Henfil– aconteciam nas páginas da Circo Editorial. Drogas, sexo, rock’n’roll e uma atitude política bem distinta daquela surgida nos botecos da zona sul carioca davam o tom.
“Essas revistas foram a internet daquela época”, diz Urizzi. “Refletiam o que se passava nas ruas e nas cabeças das pessoas”.
A Circo Editorial sobreviveu até o começo da década de 1990, quando finalmente foi dobrada pela hiperinflação. Mas a explosão que ela registrou é sentida até hoje: Glauco morreu em 2010, mas autores como Angeli, Laerte, Luis Gê, Alcy, Chico e Paulo Caruso estão aí, firmes e fortes, produzindo como nunca.
“São Paulo Meu Humor” ganha uma pungência a mais por causa do momento em que é lançada. A série mostra um Brasil que se libertava do autoritarismo e das intromissões do Estado na vida particular das pessoas –exatamente o contrário do que estamos vivendo hoje.
“Precisamos aproveitar toda essa liberdade que ainda nos resta”, conclui Pedro Urizzi. E também lembrar o que já aconteceu para aprendermos com os erros e preservarmos os acertos.