Taís Araújo faz bem em desistir de interpretar cientista que tem pele mais escura que a dela
Atriz faria Joana D'Arc Félix de Souza em novo filme para o cinema
Há pouco menos de um ano, em uma coluna publicada no F5, comentei o que, ao meu ver, era uma injustiça que estava sendo cometida contra Fabiana Cozza.
A atriz e cantora havia sido convidada para encarnar D. Ivone Lara em um musical sobre a sambista, morta em abril de 2018. As duas tinham sido próximas, e Fabiana contava até com o aval da família de D. Ivone.
Mas, assim que a escalação foi anunciada, eclodiu uma polêmica nas redes sociais. Muita gente alegou que Fabiana Cozza, filha de pai negro e mãe branca, não era adequada para interpretar D. Ivone, que tinha a pele bem mais escura. As críticas logo evoluíram para um violento assédio virtual. Exausta, Fabiana desistiu do papel.
No meu texto de então, eu reconheci que o colorismo –a discriminação que favorece os negros de pele mais clara– é um problema real, que precisa ser combatido. Mas discordei do que me pareceram exageros de alguns militantes, e tomei as dores de Fabiana. Também fui muito atacado.
Agora, passado um ano, aplaudo a decisão de Taís Araújo de abrir mão de interpretar Joana D’Arc Félix de Souza, uma grande cientista brasileira, cuja vida será contada em breve no cinema. Agora Joana deverá ser vivida por uma atriz de pele tão escura quanto a sua. Mas Taís continua ligada ao projeto como produtora associada, e deve assumir um outro papel na trama.
O que mudou de lá para cá? Algumas coisas. Para começar, Taís Araújo não foi massacrada na internet, ao contrário de Fabiana. A atriz –que, junto com o marido Lázaro Ramos, podem ser considerados ativistas do movimento negro brasileiro– se sensibilizou com as queixas e pedidos que recebeu, tanto online quanto em pessoa. Acabou sendo convencida pelo diálogo.
Eu também mudei. Nunca me considerei uma pessoa racista, mas finalmente venho percebendo que, como branco e privilegiado, eu não faço a menor ideia do que sofrem os negros brasileiros. Todos os negros, todos os dias.
Não é mimimi. Aliás, quem faz mimimi é quem diz que o racismo não existe no Brasil, ou que ele é “brando” –como se isto o deixasse tolerável.
Sempre defendi que a arte desconhece limites e que qualquer ator, em tese, pode fazer qualquer papel. Atuar é isto: é ser quem você não é. Também sou muito a favor dos elencos “color blind”, com atores interpretando personagens de etnias diferentes das deles.
Mas é preciso ser mais do que cego para não perceber que negros, gays, transexuais e outras minorias são pouco representados em quase todas as categorias profissionais. No cinema e na TV, atores gays e trans não conseguem papéis nem de gays e trans. Negros também são raros nas nossas produções, e os de pele mais escura, mais ainda.
Antes de escrever esta coluna, conversei por telefone com o diretor Alê Braga, que teve a ideia do filme sobre Joana D’Arc Félix de Souza quando foi entrevistá-la para um documentário, na França.
Alê é branco, e também foi questionado por seu interesse em contar a história de uma mulher negra: ele não teria o “lugar de fala” para tanto. Consciente disso, o próprio Alê está chamando o maior número de negros e negras para a equipe do filme, que nem roteiro tem ainda. Quer trabalhar junto. Quer aprender.
Sem Taís Araújo no papel principal, esse longa talvez enfrente ainda mais dificuldades em captar os recursos de que necessita. Mas nem a atriz, nem Alê Braga, estão desanimados. Ao contrário: a atitude deles mostra que os obstáculos são superados à base de conversa, não de porrada. Afinal, só vamos para a frente quando aprendemos que precisamos uns dos outros.