Série documental sobre DNA do 'corintianismo' vai além da torcida
Diretores falam à coluna sobre produção, que reúne ídolos e torcedores ilustres, e reconstrói parte da própria história de São Paulo
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O que é ser corintiano? O documentário Sou Corinthians, que acaba de desembarcar no catálogo do Globoplay, com produção da própria Globo, mapeia de modo apaixonante, mas também técnico, o DNA daquilo que seus idealizadores chamam de "corintianismo".
Ainda que você, leitor, não seja corintiano, como esta colunista tampouco o é, convém pensar que não foi casual o fato de a Gaviões da Fiel ter desobstruído trechos da Marginal Tietê bloqueados por bolsonaristas inconformados com os resultados das eleições de outubro passado. A mais organizada das torcidas organizadas fez então o trabalho que a polícia não teve competência para executar.
Em quatro episódios, Sou Corinthians resgata as origens do clube e mostra como foi forjada, ao longo de mais de 100 anos, a alma do corintiano. A trajetória explica por que a camisa do time está tão identificada com a democracia e seus princípios, algo explicitado em ações como a bravura da Gaviões em novembro e que antecede a marca oficial Democracia Corintiana, criada em 1982, quando os jogadores peitaram generais e entraram em campo com a inscrição "Dia 15 Vote", incentivando o público a voltar às urnas para escolher seus governadores.
"O Corinthians era o time do povo, o time dos diferentes, o time dos excluídos, o time que não pertencia a nada, e por causa disso pertencia a todos", explica o ator Dan Stulbach no documentário, ao contar que a família dos pais, vinda da Polônia, encontrou acolhimento naquela torcida, que logo abraçaria toda a gente recebida por São Paulo, especialmente depois que a cidade já se sentia mais italiana que portuguesa e a empáfia da elite já dava as regras.
Do nordestino ao caipira, do imigrante judeu ao turco ou armênio, quem chegasse encontrava ali um grupo disposto a gostar, aceitar e incluir o diferente.
Cabe a Stulbach e a Serginho Groisman, outro corintiano notório, conduzir o espectador pelos argumentos e razões que explicam o que é ser corintiano. Dirigida pelos jornalistas Edgar Alencar e Victor Pozella, a série destaca os títulos mais marcantes, as crises e os grandes personagens do clube, como Zé Maria, Wladimir, Casagrande, Neto, Rivellino, e os campeões mundiais Danilo, Emerson Sheik e Cássio, sob o olhar e o sentimento do torcedor do clube.
Apesar de ser uma grande celebração ao time, que mantém ótimas relações institucionais com o Grupo Globo, a produção não ignora os imbróglios que envolveram os escândalos do clube, em especial no que diz respeito às controversas cifras consumidas pela construção do estádio do Corinthians, em Itaquera, e quem fala sobre o assunto é o próprio Andrés Sanchez, seu ex-presidente.
VAI, CURINTIA
"O Corinthians tem uma particularidade, que é um clube que já foi bastante documentado. Há vários produtos sobre passagens do time, a Democracia, a fila de 23 anos sem título, em 77, a saga para ter um estádio', diz Edgar Alencar à coluna. "Mas o mote que a gente tem aqui é o corintianismo, não é um documentário que se propõe a falar cronologicamente da história do clube e nem das torcidas organizadas, mas é o jeito de torcer, essa é a narrativa dos quatro episódios.
"A ideia é tentar traduzir isso, existe um jargão para quem é muito hard user do futebol, de que a torcida do Corinthians é diferente, é uma torcia que apoia muito, mesmo quando o time está perdendo ela é presente no estádio", sublinha Victor Pozella. "Existe uma lei que não se pode vaiar durante os 90 minutos em campo, se for pra vaiar é depois do jogo, existem uns dogmas, um jeito de torcer do corinthiano, e vem daí nossa tentativa de traduzir isso."
"Todo torcedor acha que seu time é especial, claro, e cada torcida tem as suas particularidades. Existe uma história que forjou o corintiano e ele tem uma maneira de se portar, de sofrer essa dor. A gente escolhe acontecimentos marcantes para usar esses dogmas", completa.
"Tudo no Corinthians vem com um fardo, um peso", confirma Groisman no doc, que dispensa a figura de narrador e faz do apresentador e de Stulbach os condutores desse roteiro, apenas por meio de seus depoimentos. A dupla de diretores também se preocupou em optar por um resultado que não parecesse óbvio aos mais fanáticos, e esta é uma torcida basicamente composta por fanáticos, sendo também palatável aos corintianos soft e, tomara, agradável aos não corintianos.
Apesar de compreender um período histórico, a narrativa buscou ainda ser atemporal, com chance de agradar a torcedores de todas as idades e de ser um documento não perecível, que possa ser revisitado ao longo de muitos anos por outras gerações.
"Um garoto de 9 anos, hoje, que torce para o Corinthians, nasceu e a arena estava para ser inaugurada, ele não tem ideia da piada que perseguiu o Corinthians por tantos anos, por não ter estádio próprio, quando todos os outros clubes tinham, isso faz parte dos elementos que forjaram o caráter, no sentido de características, do corintianismo. Foi uma piada ouvida por anos, assim como eu não, com 30 anos, não tinha ideia do que foi a fila que durou até 1977", exemplifica Pozella.
LAVA-JATISMO
Além de ouvir Andrés Sanchéz sobre as suspeitas que nortearam a construção do estádio do Corinthians, inaugurado durante a Copa de 2014 no Brasil, o documentário conversa com a jornalista Malu Gaspar, autora do livro "A Organização - A Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo".
"Temos boas relações com o Corinthians, mas tocamos em pontos sensíveis, não é uma produção institucional nem chapa branca. O Andrés falou ali francamente sobre tudo. Mas também não tem um tom de protesto", avisa Alencar.
QUEM FALTOU?
Entre as frustrações pelo resultado final, nada tão grave, mas faltou um depoimento do argentino Carlos Thevez, peça-chave na conquista do tetracampeonato brasileiro do time em 2005. A equipe chegou a agendar a gravação de entrevistas com o hoje técnico quando ele ainda jogava, mas não deu certo. Thevez, no entanto, está no doc por imagens resgatadas de sua época em campo pelo Coringão.
Os diretores resgataram imagens preciosas do acervo da Globo e de outros canais, e confessam ter sofrido para fazer cada episódio caber em 45 ou 50 minutos, no formato de quatro capítulos. "Tivemos que cortar blocos inteiros de histórias, mas nossa proposta era deixar tudo bem amarradinho", conta Pozella.
ADEUS AO PACAEMBU
O Estádio Paulo Machado de Carvalho, vulgo Pacaembu, é quase um personagem da produção, e poderemos obter dali talvez algumas das últimas imagens daquela que foi a casa do Corinthians durante a maior parte da existência do time. Será um bom registro arquitetônico do que o Pacaembu foi, já que o Tobogã que tantas vezes abrigou aquela e outras torcidas foi ao chão recentemente, e todo o seu entorno foi preterido por uma proposta que descaracterizou o estádio a partir da concessão do espaço pela prefeitura à iniciativa privada.
RELÍQUIAS DA DUPLA
Entre as imagens raras resgatadas pela série, Pozella cita cenas da saída de Casagrande da delegacia, nos anos 1980. Na ocasião, ele foi detido para averiguação, sob acusação de porte de drogas que depois se mostrou insustentável, em uma das tantas blitze sofridas pelos jogadores daquela época de ditadura em que estampavam Democracia na camisa.
"E tem declarações do Sócrates que se fossem de 2023 seriam atuais demais", avisa Pozella.
REVELAÇÕES DO PASSADO
Entre as boas histórias do primeiro episódio, vale conferir o desabafo de Rivellino sobre sua saída do time, sob tantas críticas, e a dúvida se continuaria a jogar futebol a partir dali.
Há também as confissões de Neto, hoje apresentador dos mais polêmicos abrigados pela Band, que admitiu o quanto se dedicou ao preparo físico, em 1990, para ser o que ele mesmo chama de "principal" ator daquele elenco que conquistou o primeiro título nacional para o clube.
Neto conta que foi contra a contratação de Leão naquela temporada, e deixou isso claro ao então presidente Vicente Mateus. Antes de desembarcar no Parque São Jorge, conta ter deixado o Palmeiras sem expectativas: "Saí do Parque Antártica e fui chorando entre os dois canteiros, na rua, 'estão me mandando embora'", contou ele no doc. E reconheceu que aquela seria sua última chance de mostrar relevância como jogador.
"Eu gostava de beber, gostava de tomar um uísque, gostava de cerveja, gostava de um bar. Na verdade eu gostava de putaria, eu nunca gostei de bar, eu gostava de zona mesmo", fala Neto, com a franqueza que lhe é peculiar.
O documentário traz boas histórias de outros ídolos e torcedores, episódios que, revisitados a distância, motivam os protagonistas da trajetória do time a revelar seus afetos e relações com cenas vividas sob o manto alvinegro.