Zapping - Cristina Padiglione
Descrição de chapéu jornalismo mídia

Globo rompe paradigmas ao citar Augusto Nunes e Jovem Pan em documentário

Série que aborda fake news e o bolsonarismo também dá voz a 'algoritmo enviesado' do YouTube

Imagem de Augusto Nunes ancorando programa da TV Jovem Pan, menção feita pelo documentário 'extremistas.com', do Globoplay - Reprodução

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

É historicamente excepcional que a Globo mencione outros veículos de comunicação em produções próprias, a não ser quando reconhece que algum jornal, site, emissora de rádio ou TV tenha revelado antes determinada informação relevante para o interesse público no cenário nacional.

Assim, essa excepcionalidade raramente se configura como um olhar crítico ou de quem aponta o dedo para o outro, mesmo que de modo velado, e mais ainda de forma nominal, como acontece agora com uma citação dos ataques do ex-âncora da Jovem Pan, Augusto Nunes, ao STF, quando ele ainda dominava o microfone da emissora, e o papel do YouTube nesse cenário.

A abordagem está em "extremistas.com", série documental em oito capítulos --seis deles já disponíveis--, com realização do Grupo Globo para o GloboPlay. A produção aponta diagnósticos, riscos e efeitos do bolsonarismo radical.

A menção a Nunes não é feita diretamente pelos responsáveis pela série documental, mas por meio de uma das entrevistadas ouvidas em "extremistas.com". Diretora do NetLab, que tem estudos relacionando os mecanismos do Google à difusão de mentiras pela internet, Marie Santini, da UFRJ, questiona o favorecimento do YouTube à Jovem Pan, cujo conteúdo muitas vezes continha acusações que não se sustentavam nos fatos.

"Tem o culpado por crimes contra a Constituição, que é o Alexandre de Moraes, e oito comparsas, não são juízes", diz Augusto Nunes pela tela da TV Jovem Pan em um trecho recortado pelo documentário, referente a abril do ano passado.

Nunes encabeçou uma lista de demissões e desligamentos promovidos pela emissora assim que se consumou a vitória de Lula nas urnas. Esta semana, dias depois de ter virado alvo de inquérito do Ministério Público Federal de São Paulo, que investiga a prática de fake news pela emissora, a Jovem Pan dispensou Rodrigo Constantino e Zoe Martinez, que em várias ocasiões incentivaram a ação de bolsonaristas acampados diante de quartéis como resistência ao resultado das eleições de outubro.

Alguns desses militantes são perfilados pelo documentário do GloboPlay, que toma o cuidado de não julgá-los, expondo cada um apenas a partir de suas ações, frases e contradições.

"Os ataques ao Supremo foram reforçados por comentaristas que importaram dos Estados Unidos o estilo ultra conservador da mídia hiperpartidarizada", diz o texto do doc, na voz de Malu Mader, narradora que guia o roteiro da produção.

Em outro trecho destacado de sua fala, Augusto Nunes afirma: "Fizeram papéis de vilões, que são os ministros do Supremo".

"A campanha contra o STF é uma campanha permanente que já tem uns quatro anos", avisa a pesquisadora Marie Santini. "Então, eles [bolsonaristas] vêm fazendo #STFVergonhaNacional, que é uma hashtag que a gente acompanha no Twitter, é uma hashtag estável, todos os dias é o mesmo volume, isso mostra claramente a automação, eles fazem essa campanha permanente porque isso vai tirando um pouco a credibilidade, vai criando um certo ranço da população contra o STF", ela explica.

Diante desses elementos, a pesquisadora lembra que o YouTube tinha um compromisso de privilegiar fontes confiáveis de informações. "Matematicamente, de 18 vezes, a Jovem Pan aparecer dez vezes como a primeira recomendação [do YouTube], a probabilidade de isso acontecer é 0,00002%. É muito baixa, e apareceu 55% das vezes. Então, a gente fez um experimento que mostra que, matematicamente, o algoritmo está enviesado. E aí, no meio da eleição, ela [Jovem Pan] receber esse privilégio da principal plataforma de conteúdo é muito problemático, que é um momento que tem regras para todos os meios de comunicação", ela conclui.

O estudo, que foi antecipado pela Folha em reportagem de Patrícia Campos Mello, em 13 de setembro passado, motivou a campanha de Lula a questionar o TSE sobre o assunto no dia seguinte. Ao resgatar seus efeitos, o documentário promove aquele cenário a um outro o contexto, agora com a Jovem Pan na mira do MPF, após uma tardia mudança de rumos do próprio YouTube.

Malu Mader, a narradora do documentário, reassume a condução do script para informar que "o estudo coordenado por Marie Santini mudou as recomendações propostas pelo Youtube assim que foi publicado, em setembro, mas os canais da emissora, como o Pingos nos Is [que era apresentado por Augusto Nunes] só seriam desmonetizados pela plataforma dois meses depois".

Ainda no trecho editado pelo documentário para mostrar o posicionamento da Pan contra o Supremo, Nunes diz: "O asterisco da história já estava de bom tamanho, no papel que eles de fato desempenharam: os bandidos da história", afirmou, sobre os ministros da corte.

"O que mais me impressiona é um âncora de uma TV como a Jovem Pan, ele deliberadamente chamar os ministros de bandidos, sem provas, usar vocabulário de ódio, de rede social, pra criar esse clima num programa de TV".

Santini conclui: "No dia seguinte [à publicação do estudo], o sistema de recomendação muda radicalmente, provavelmente uma resposta ao escândalo que foi. Então, eles retiram todas as fontes de notícias da primeira página [do Youtube] e da recomendação, e colocaram justiça eleitoral na primeira página. Isso mostra que o Youtube consegue apertar um botão e modifica o sistema de recomendação".

OUTRO LADO

Procurado pela coluna, Nunes diz que "não sabia da existência desse documentário". "Sou jornalista profissional há 53 anos. Pelo que depreendo da tua mensagem, é a primeira vez que me associam a discursos de ódio, fake news, incitações a atos extremistas e outras variantes do mesmo besteirol. O que posso te adiantar é o seguinte: assumo a autoria de todos os comentários que faço e de todos os textos que escrevo, desde que reproduzidos na íntegra."

A PRODUÇÃO

Lançado no dia 11 de janeiro, apenas três dias após o domingo protagonizado pelos ataques de bolsonaristas aos três poderes em Brasília, "extremistas.com" foi ágil na edição para incluir cenas do vandalismo já no primeiro episódio. O acontecimento veio a calhar para uma série que vinha sendo idealizada desde março de 2021, um ano após o início da pandemia, pela equipe do Jornalismo da Globo, para ser lançada neste início de ano.

Segundo o grupo Globo, a produção só chega agora, após as eleições para evitar que elementos da produção fossem explorados durante a campanha, mas a questão é: o GloboPlay lançaria a série agora, caso Jair Bolsonaro tivesse vencido as eleições?

Dos oito episódios previstos, seis já estão disponíveis e os dois últimos entrarão em cena no dia 25 de janeiro.

A produção propõe analisar o extremismo que tomou conta da direita radical no Brasil e os motivos que levam milhares de brasileiros a disseminar discursos golpistas, indo do armamentismo ao uso da religião, do negacionismo à manipulação da moral e dos costumes, da engenharia dos algoritmos ao chamado marketing da indignação.

São ouvidos especialistas e pesquisadores que monitoram esse comportamento, e retratados personagens conhecidos da política nacional, atores políticos improváveis, influenciadores digitais em ascensão, militantes arrependidos e eleitores desconhecidos.

"Foi um mergulho intenso e desafiador", diz Caio Cavechini, diretor da série. "Nosso trabalho em extremistas.br foi principalmente de ouvir e observar. É interessante que muitos se abriram para a nossa equipe, quando abordados fora do ambiente de grupo, em conversas individuais. A minha sensação é de que a série é uma contribuição duradoura para o debate sobre os motivos que levam as pessoas a atacarem a democracia", argumenta.

‘extremistas.br’ traz histórias de quem se mantém oculto na guerra virtual, como um jovem que trabalha engajando internautas usando fake news e ataques à reputação de adversários dos seus clientes. Ao acirrar os ânimos e estimular a indignação –sentimento que, segundo especialistas, explica a sedução exercida por discursos raivosos no mundo todo–, ele ajuda a pavimentar o caminho dos radicais.

Uma militante infiltrada em grupos radicais testemunha a estratégia do chamado gabinete do ódio e como eles incentivam os protestos antidemocráticos. Outro personagem é um influenciador, de 19 anos, que tenta ganhar espaço entre dezenas de youtubers para monetizar seu canal divulgando ideias extremistas.

Casos como as mortes do tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu, em julho deste ano, e de um soldado da PM da Bahia, por causa de um surto possivelmente motivado por fake news durante a pandemia de Covid-19, simbolizam a troca do debate político pelo uso da arma de fogo.

A série também conta a história do casal de universitários que criou o perfil brasileiro do Sleeping Giants, movimento dedicado a alertar empresas e consumidores sobre páginas em redes sociais acusadas de disseminar mensagens falsas e discursos de ódio. A dupla já teve em sua mira o blogueiro Allan dos Santos, do canal Terça Livre, o apresentador de TV Sikera Junior e a militante Sara Winter, entrevistada pela produção.