Cinema e Séries
Descrição de chapéu Filmes

Ricardo Darín: 'As pessoas me atribuíram um valor muito mais alto do que eu mesmo me atribuo'

Ator estrelou todos os filmes que valeram indicações ao Oscar para a Argentina neste século

Ricardo Darín posa para retrato em Los Angeles - David Billet/The New York Times

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Carlos Aguilar

A sorte vem favorecendo Ricardo Darín há muito tempo. Mais do que o conceito subjetivo de talento, é à providência, manifestada na forma da confiança inabalável de outras pessoas quanto às suas capacidades, que o ator atribui crédito pela sua carreira de imenso sucesso, como o astro de cinema argentino mais celebrado em todo o mundo.

"Tive toda a sorte que os meus pais não tiveram como atores", ele me disse, em espanhol, durante uma entrevista recente no Hotel Sunset Tower. "Em muitas ocasiões, as pessoas me atribuíram um valor muito mais alto do que eu mesmo me atribuo, e em mais de um momento questionei se mereço mesmo tudo isso."

O último exemplo de seu relacionamento feliz com Madame Sorte é o papel de Darín como Julio Strassera, um procurador de Justiça argentino real, em "Argentina, 1985", drama histórico de tribunal sobre o chamado "julgamento das Juntas", no qual os antigos líderes militares argentinos foram julgados por violações dos direitos humanos durante o período de ditadura no país. Dirigido por Santiago Mitre, o filme valeu à Argentina uma indicação para o Oscar de melhor longa-metragem internacional.

Darín parece ser o amuleto da sorte do seu país, quando o assunto é o Oscar. Ele estrelou em todos os quatro filmes que valeram indicações para a Argentina neste século, entre os quais "O Filho da Noiva", "Relatos Selvagens" e "O Segredo dos Seus Olhos", que levou a estatueta para casa em 2010. A Argentina apresentou várias outras produções lideradas por Darín à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood ao longo dos anos —o que significa que, apesar de nem todos terem sido selecionados para a disputa de prêmios, os filmes em que ele aparece são quase sinônimos do melhor do cinema argentino.

Desde o primeiro aperto de mão, Darín, 66, irradia uma aura acolhedora. Vestido casualmente, com calças jeans azuis e um suéter azul-marinho, ele fala com um calor e uma franqueza que a maioria das pessoas reserva para seus amigos mais próximos. E esse temperamento transparece nas telas.

"Ricardo tem um imenso poder de suscitar empatia em sua audiência, e isso é raro", disse o diretor Juan José Campanella, que colaborou com Darín em quatro longas-metragens.

Embora o ator tenha herdado a paixão pela atuação de seus pais, que eram atores profissionais e trabalhavam em Buenos Aires, nem pais e nem filho estavam entusiasmados com a possibilidade de ele levar adiante a tradição artística da família. "Eles não brigaram comigo por minha escolha, mas tampouco me encorajaram a tentar a carreira", ele recordou.

Darín acredita que seu caminho tenha sido predeterminado. Ele era frequentador regular de estúdios de cinema e televisão e dos bastidores do teatro, na infância, e atuou profissionalmente pela primeira vez aos três anos de idade, em 1960, na série "Soledad Monsalvo". Aos 10 anos, estreou no palco ao lado dos seus pais. Quando participou de sua primeira oficina de teatro, aos 14 anos, Darín já se sentia como veterano experiente, e tinha experimentado muitas facetas do trabalho em primeira mão.

Durante algum tempo, na adolescência, ele contemplou a possibilidade de se tornar veterinário, psicólogo ou mesmo advogado. Mas por fim, o mundo com o qual sempre esteve familiarizado o convenceu a ficar. As portas se abriram facilmente para ele, com convites frequentes para participar de uma variedade de projetos.

É a essa confiança de pessoas notáveis na indústria que o ator define como "sorte". Darín tem boas recordações da diretora de televisão Diana Álvarez, que entrou em uma briga com uma rede de TV em 1982 a fim de escalá-lo para um papel na série "Nosotros y Los Miedos". Ela percebia no ator um potencial que outras pessoas não viam.

"Na nossa profissão, a sorte é muito importante", disse Darín. "Há pessoas muito talentosas lá fora, com muito a dizer, mas que não conseguem encontrar oportunidades."

Na década de 1990, Darín encontrou imenso sucesso na sitcom "Mi Cuñado", no papel de um trapalhão impertinente mas charmoso. O contrato dele com a rede o impedia de fazer outros trabalhos televisivos, mas permitia que fizesse filmes. Entre esses trabalhos esteve a sua primeira colaboração com Campanella, "O Mesmo Amor, A Mesma Chuva" (1999), que ajudou outros cineastas a perceberem um talento que ia além da persona televisiva do ator.

Um desses diretores, Fabián Bielinsky, o escalou para o thriller "Nove Rainhas" (lançado na Argentina em 2000), no papel de um vigarista seboso. "Ele me disse que não tinha pensado em mim para aquele papel. E que eu era carismático demais, e ele não queria que o público sentisse empatia pelo personagem", recordou Darín.

Na opinião de Campanella, "o único papel que Ricardo não é capaz de fazer é o de um cara de quem as pessoas não gostem. A prova mais evidente é ‘Nove Rainhas’, onde ele interpreta um vigarista amoral, mas ainda assim torcemos por ele".

O sentimental "Filho da Noiva", de Campanella, chegou no ano seguinte e aproveitou a sensibilidade cômica de Darín para o papel de um dono de restaurante que precisa lidar com seus pais idosos.

"Uma vez, um crítico argentino o definiu como ‘o nosso Henry Fonda’, porque ele projeta uma grande integridade", disse Campanella. "Mas ele tem algo que a Fonda não tinha; estou falando de um grande senso de humor."

Darín sustenta que foi o empuxo duplo de "Nove Rainhas" e "O Filho da Noiva" que cimentou sua carreira cinematográfica. "Era um excelente cartão de visita para um ator ter a possibilidade de mostrar duas facetas absolutamente opostas quase de uma só vez", disse Darín. "Embora eu já fosse bem conhecido pelo trabalho na televisão e teatro, foi naquele momento que comecei a sentir que os meus colegas me viam em uma luz melhor."

De lá para cá, ele ganhou muita liberdade para escolher seus papéis no cinema, o que inclui o elogiado "O Segredo de Seus Olhos", de Campanella, no qual ele estrela como um investigador assombrado por um caso macabro e não resolvido.

Outro dos favoritos pessoais de Darín é a comédia dramática "Truman" (2017), centrada em um doente terminal que está passando seus dias finais em companhia de seus melhores amigos, um humano e um canino. O caráter irônico do personagem lembrou Darín de seu pai [morto em 1989], também chamado Ricardo Darín, a quem o ator descreveu como um homem renascentista peculiar, dotado de um senso de humor ácido e de ideias selvagens que outras pessoas achavam difíceis de digerir.

Hollywood já tentou atrai-lo para trabalhos algumas vezes, mas o ator recusou os convites, sobretudo porque o mais difícil para um ator é pensar em outra língua, ele disse, acrescentando que os close-ups revelam quando a pessoa está simplesmente recitando um texto decorado, e não habitando uma emoção.

"Sempre confiei mais no meu instinto do que no meu coração ou na minha cabeça", explicou Darín, apontando para a a barriga e afirmando que "confio na forma como o material me atinge bem aqui".

Na Argentina, seu papel em "Relatos Selvagens", de Damián Szifron, (lançado nos Estados Unidos em 2015), como um cidadão frustrado que luta contra a burocracia opressiva, foi acolhido calorosamente pelo público. "Ricardo tem uma perspectiva lúcida sobre as realidades que afetam seu país", disse Szifron. "Ele é uma figura popular, e ao mesmo tempo um ator sofisticado."

Para "Argentina, 1985", Mitre e Darín concordaram em não imitar a voz ou maneirismos exatos do verdadeiro Strassera, e em lugar disso assumiram certo grau de liberdade artística em sua recriação.

Mitre, que tinha dirigido Darín como um presidente argentino fictício em "A Cordilheira", uma saga política de 2017, disse que admirava a forma como o ator produz uma interpretação verdadeira por meio de uma síntese entre suas sensibilidades pessoais e as do personagem.

"É como se a câmara fosse capaz de capturá-lo em sua totalidade, mostrá-lo em toda a sua complexidade", disse Mitre. "Sempre que você vê Ricardo atuar, sabe que haverá uma grande honestidade na tela."

Para além da recepção crítica positiva de "Argentina, 1985" —e de sua vitória no Globo de Ouro—, Darín disse que o efeito mais significativo do filme foi conscientizar uma geração mais jovem sobre um capítulo doloroso na história do país.

"Não podemos esquecer que, por trás desta recuperação do acontecimento histórico, que nos trouxe muitos elogios e felicidade, há uma história profundamente dolorosa sobre um tipo de sofrimento para o qual não existe bálsamo", observou Darín, com uma expressão solene.

A tradição de atuação da sua família está sendo perpetuada por Chino Darín, o filho do ator, com quem ele criou uma produtora. Os dois estrelaram e produziram a comédia "A Odisseia dos Tontos" (2019). Ricardo Darín nunca se opôs ao interesse do seu filho pelo ofício, aconselhando-o apenas a seguir o caminho que lhe trouxesse mais satisfação.

"Sou uma daquelas pessoas que acreditam que a coisa mais importante na vida é tentar ser feliz", disse Darín. "Quanto mais próximo você estiver da sua vocação, maior a probabilidade que terá de ser feliz."

Tradução de Paulo Migliacci