'Lilo & Stitch' faz 20 anos: filme rompeu moldes antes de 'Frozen' e 'Moana'
Animação antecipou tendências vistas em filmes mais recentes da Disney
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Quando o diretor Chris Sanders estava começando a trabalhar em "Lilo & Stitch", a supervisora de desenvolvimento visual do filme, Sue Nichols, fez uma comparação que o espantou.
"Ela fez um desenho que mostrava Mulan ao lado de Nani", disse Sanders, se referindo à irmã mais velha de Lilo. "E apontou que na verdade faltavam partes da anatomia de Mulan, se você considerar a altura de seu torso."
Sanders, que escreveu e dirigiu "Lilo & Stitch", com Dean DeBlois, optou por um estilo de animação com figuras mais rechonchudas, para seu filme, uma comédia de aventura que continua a conquistar fãs e críticos por conta de seus tipos físicos realistas, precisão cultural e protagonista incompreendida, nas duas décadas transcorridas desde o lançamento do filme, em 21 de junho de 2002.
O filme conta a história de uma menina havaiana, Lilo, cuja vida é desordenada pelo pouso forçado da nave de um alienígena fugitivo, Stitch, perto de sua casa. O filme preparou o terreno para as tendências vistas em filmes mais recentes da Disney, por exemplo a ausência de uma história de amor e uma protagonista menos positiva e otimista.
"Quando a folha do calendário estava virando da década de 1990 para a de 2000, todo mundo achava que o mundo ia acabar", disse Shearon Roberts, editora de "Recasting the Disney Princess in an Era of New Media and Social Movements", um livro sobre as mudanças pelas quais as princesas da Disney passaram, e professora associada de comunicação de massa na Universidade Xavier, em Nova Orleans. "Por isso, todo o conteúdo que eles começaram a criar passou a ser menos relacionado aos contos de fadas que tínhamos visto nas décadas de 1980 e 1990 e mais a uma exploração do desconhecido".
Sanders inicialmente tinha concebido a história como livro infantil, mas mudou sua proposta para enquadrá-la à telona. E o projeto enfrentou obstáculos desde o começo.
Depois de uma sucessão de lançamentos fortes mas dispendiosos na década de 1990, como "Atlantis - O Reino Perdido" e "Tarzan", cujos orçamentos superaram os US$ 120 milhões (R$ 628 milhões no câmbio atual), os produtores de "Lilo & Stitch" tinham por objetivo fazer um filme menor, por US$ 80 milhões (R$ 419 milhões). DeBlois e Sanders, que tinham trabalhado juntos no desenvolvimento do roteiro de "Mulan" (1998), voltaram a colaborar, e escreveram e dirigiram o novo trabalho juntos. Daveigh Chase, que nem tinha chegado à adolescência mas já era uma atriz veterana, foi escalada como a voz de Lilo. No caso de Stitch, porém, o escolhido para o papel foi Sanders.
"Não queríamos recorrer a um ator real, como Danny DeVito, e ver o estúdio reclamar por termos contratado um sujeito famoso para dizer no máximo 15 palavras de diálogo", disse Sanders.
"Amo que seja essa a recordação dele sobre o que aconteceu", disse Clark Spencer, que produziu o filme e hoje é presidente do Walt Disney Animation Studios. "Mas o personagem era Chris desde o primeiro dia. Ele fez o primeiro desenho; ele é que sabia o que desejava que o personagem fosse, que voz ele deveria ter. Não consigo imaginar outra voz que não a de Chris, para Stitch".
Inicialmente, a história se passaria na região rural do Kansas, mas, depois de um período de férias em uma ilha, Sanders decidiu que queria que a história acontecesse em outro lugar remoto: Kauai, no Havaí.
Ele, DeBlois e outros integrantes da equipe de criação fizeram mais uma viagem –esta, juntos– para Kauai, onde conversaram com moradores locais e se familiarizaram com a cultura havaiana.
"Uma coisa que aprendemos ao trabalhar em ‘Mulan’ é que quando você situa uma história em um lugar específico do mundo real, há lugares aos quais você não pode ir", disse DeBlois. "Há elementos culturais que você não pode usar, por ser um forasteiro."
Por isso, eles recorreram ao músico havaiano Mark Keali’i Ho’omalu como consultor para as danças de hula e os arranjos dos corais, e selecionaram para o elenco pessoas que cresceram no Havaí —Tia Carrere, que deu voz a Nani, e Jason Scott Lee, que interpretou seu namorado– e eles sugeriram mudanças para refletir melhor o dialeto coloquial de Kawai.
A produção não fez o mesmo que a de "Moana - Um Mar de Aventuras", que contratou uma equipe de direção e roteiro havaiana, ainda que Roberts, a pesquisadora da Universidade Xavier, tenha afirmado que o retrato mais realista que o filme oferece sobre o Havaí representou pelo menos um bom começo.
"A Disney sempre teve dificuldades para contar histórias sobre a região Ásia-Pacífico", ela disse. "É por isso que eles dedicaram tanto tempo a formar a equipe consultiva e de criação de ‘Moana’, um filme que teve uma recepção muito melhor, da formação do elenco ao esforço para que certas porções da história não resvalassem nos estereótipos. Eles tinham aprendido algumas lições sobre como encontrar pessoas para apoiar a equipe de roteiristas."
"Lilo & Stitch" tratava de questões reais com as quais os espectadores jovens poderiam se identificar: Nani, forçada a se tornar a guardiã legal de Lilo quando os pais delas morrem em um acidente de automóvel, enfrenta dificuldades para cuidar da irmã. E uma assistente social sempre parece apanhar Nani e Lilo em seus piores momentos.
Mas os realizadores ainda assim receberam comentários negativos na primeira exibição do filme, disse Sanders. Os espectadores não gostaram de ver Nani agarrando Lilo pelo pulso, em uma cena, porque acreditavam, incorretamente, que ela fosse a mãe da menina.
A equipe resolveu o problema recorrendo a um truque proposto por Howard Ashman: "Ele disse que, se você quer que a audiência se lembre de alguma coisa, precisa dizê-la três vezes em seguida", disse Spencer. "Assim, refizemos a cena", para garantir que houvesse três menções consecutivas ao fato de que as duas eram irmãs.
Mas a equipe optou por não alterar o filme em resposta a outra queixa, disse Spencer: os espectadores não gostavam do fato de que Lilo e Nani gritavam constantemente uma com a outra.
"Chris, Dean e eu rebatíamos que a realidade é essa", disse Spencer. "É um momento em que Nani está se sentindo pressionada, em que Lilo se sente deslocada e tenta descobrir quem ela de fato é."
Os realizadores também priorizaram realismo em outra área: os corpos femininos foram retratados de maneira mais realista. Lilo é baixinha e corpulenta, e Nani tem coxas grossas e o que Sanders descreve como "uma pélvis real".
Roberts, a pesquisadora, disse que o filme se afastava significativamente do cardápio da Disney. "Uma década antes, as princesas tinham corpos adultos plenamente desenvolvidos", ela disse. "Mas Lilo foi autorizada a ter um corpo de criança. O rosto dela é muito inocente. Temos um corpo que não é tamanho XP –e uma figura feminina plenamente corporificada naquelas dimensões".
E Lilo também pode ser criança em termos de personalidade. "Um dos clichês desse tipo de filme é que as crianças são sempre mais inteligentes, melhores e mais sintonizadas do que os adultos, que são retratados de modo caricatural", disse Sanders. "Mas não foi o que nós fizemos. Lilo morde uma menininha, tem chiliques e diz coisas simplesmente absurdas. Age como uma criança de verdade."
Lilo, disse Roberts, foi uma das raras protagonistas femininas nos filmes de animação Disney a não ter um par romântico (desconsiderada a paixão dela por Elvis Presley). Ao optar por concentrar as atenções no elo fraterno entre Nani e Lilo, o estúdio por fim conseguiu reverter um arquétipo que havia sido estabelecido no passado distante, com Branca de Neve e os Sete Anões", ela acrescentou.
A Disney já vinha "desmontando levemente a mensagem do ‘um dia encontrarei meu príncipe’, desde a década de 1990", disse Roberts, acrescentando que filmes anteriores como "A Bela e a Fera" e "Mulan" provaram que uma protagonista feminina tão forte quanto seu par romântico era capaz de gerar lucros. "E Lilo os levou um passo adiante, ao eliminar de vez o par romântico masculino".
Janet Wasko, autora de "Understanding Disney: The Manufacture of Fantasy", aponta que, ao se concentrar em uma protagonista feminina sem um romance ou casamento na trama, "Lilo & Stitch" prefigurou futuras estrelas da Disney como Moana, Luisa Palomanes, de "Valente", e Riley, de "Divertida Mente".
"Lilo & Stitch" se tornou um grande sucesso de público e crítica, e sua bilheteria inicial ficou apenas US$ 500 mil (R$ 2,6 bilhões no câmbio atual) abaixo da de "Minority Report", um thriller com Tom Cruise; o filme terminou faturando US$ 273 milhões (R$ 1,4 bilhão) no mercado mundial. (E conquistou uma indicação ao Oscar de melhor filme de animação, mas perdeu o prêmio para "A Viagem de Chihiro", de Hayao Miyazaki.) A história se transformou em uma franquia que rendeu mais três longas-metragens produzidos diretamente para a televisão, e três séries, além de diversos atrações em parques de diversões. O estúdio está até desenvolvendo uma refilmagem em formato "live action".
"É um daqueles filmes que, quando alguém me pergunta em que eu trabalhei no passado, eu menciono ‘Lilo & Stitch’ e percebo a mudança que isso traz na atitude da pessoa", disse Spencer.
Muitos fãs já disseram a ele o quanto se identificam com o filme –com a frustração de Lilo por ser incompreendida, com a determinação de Nani apesar de um mundo que contraria suas boas intenções o tempo todo, e até mesmo com a natureza rebelde de Stitch.
"Quando o filme saiu, era disso que muitos críticos falavam", ele disse. "Aqueles momentos que eram baseados na realidade e levavam as pessoas a se verem refletidas neles; os personagens não pareciam figuras de desenho animado."
De sua parte, Sanders gostaria que as pessoas percebessem o quanto o relacionamento entre as duas irmãs prenunciava "Frozen - Uma Aventura Congelante", mais de uma década antes.
"Quero deixar claro que acho ‘Frozen’ ótimo", ele disse. "Mas foi um pouco frustrante para mim ouvir pessoas dizendo ‘enfim uma relação não romântica entre aquelas duas meninas’, quando eu sabia que já tínhamos feito aquilo. Com certeza, aquilo já tinha sido feito."
Tradução de Paulo Migliacci