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The New York Times

'Inside', de Bo Burnham: especial de comédia e uma experiência inspirada

Comediante foi um dos primeiros astros do YouTube

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Jason Zinoman

The New York Times

Um dos desenvolvimentos mais encorajadores no humor, nos últimos dez anos, vem sendo a crescente ambição diretorial dos especiais de comédia. Já que é tolice tentar reproduzir o clima de um palco ao vivo, por que não ajustar a produção completamente às telas e fazer alguma coisa visualmente ambiciosa, como um filme faria?

Na vanguarda dessa tendência, temos Bo Burnham, um dos primeiros astros do YouTube, que passou a produzir especiais inovadores, com canções satíricas, iluminação teatral e vozes incorpóreas. Nos últimos anos, ele começou a dirigir especiais de outros humoristas, comandando gravações de apresentações de stand-up de Chris Rock e Jerrod Carmichael, e recorreu nelas aos close-ups muito próximos que caracterizam seu estilo.

Seu novo especial, "Inside"(Netflix), leva essa tendência ainda além, tão além que a sensação é de que ele criou algo de inteiramente novo e improvável, com amplitude cinematográfica e intimidade claustrofóbica a um só tempo, uma comédia musical perfeitamente enquadrada ao “zeitgeist”, com elenco de uma pessoa e dirigida a ninguém.

É um feito virtuosístico, o trabalho de um experimentalista talentoso cuja técnica enfim se equiparou ao seu talento. E embora o especial seja um retrato sombrio do isolamento trazido pela pandemia, sua existência é causa de esperança: escrita, dirigida e gravada por Burnham em uma só sala, a produção ilustra que nada é mais inspirador do que as limitações.

Em seu nível mais simples, "Inside" é a história de um humorista que batalha para produzir um espetáculo engraçado durante a quarentena, e enlouquece aos poucos. Burnham conta que deixou de se apresentar ao vivo como humorista alguns anos atrás porque começou a sofrer ataques de pânico, e que retornou em janeiro de 2020 antes que, como ele diz com perversa ironia, "acontecesse uma coisa engraçadíssima".

O motivo para que tenha começado a fazer o especial, ele explica no programa, foi se distrair e assim evitar dar um tiro na cabeça, a primeira de diversas menções a suicídio (em uma das quais ele diz aos espectadores que “não façam e pronto”).

Com efeitos sonoros ameaçadores de filme de terror, e um trabalho de câmera onírico e frenético, o que se torna claro é que o título de Burnham tem duplo sentido: ele fala não só de estar dentro de uma sala, mas dentro de sua cabeça. Sempre existiu essa tensão em seu humor, entre uma esperteza irônica leve e um ponto de vista um tanto melodramático.

Sob os truques formais que lembram Steve Martin, sempre bateu o coração de um garoto excêntrico e dramático que ama o teatro. E o maior risco que Burnham corre no programa é liberar seu lado emocional, mas não sem antes fazer um monte de brincadeiras.

A primeira parte é dominada por sátiras absurdas e engraçadas do momento, como uma canção visualmente precisa e hilariante sobre mídia social e vaidade, "White Woman’s Instagram", e um comercial de um consultor que trabalha para marcas "woke". ("A pergunta deixou de ser se alguém compra sucrilhos, mas, sim, se a pessoa apoia a luta dos sucrilhos contra a doença de Lyme.")

Depois de 35 minutos de esquetes de comédia coloridas e leves, o tom muda com a primeira canção séria de Burnham, um rock indie adorável com um refrão grudento sobre "tentar ser engraçado trancado em uma sala".

É esse o ponto de inflexão do especial. Tocando um sintetizador, ele canta sobre os desafios do isolamento, sentado no assoalho de um quarto entulhado, com dois quadrados de luz solar reluzente invadindo o espaço pelas janelas.

Muitas das canções começam sérias e depois viram piada, mas esta não. Ainda que ela também tenha uma virada. No começo, a letra parece falar da vida na pandemia., mas se torna uma referência ao passado de Burnham, quando ele fazia caretas e escrevia piadas em seu quarto, na adolescência, e colocava os vídeos na internet.

A canção mais ou menos relata as origens de Burnham. Embora o especial seja produto de uma evolução, ele aponta ao mesmo tempo que se trata de uma regressão. Burnham está de volta ao lugar em que começou, fazendo piadas sozinho no quarto, em um esforço para escapar de sua realidade. Há uma nostalgia terna na canção, mas partes dela retornam ao longo do especial em formas mais sombrias, um dos muitos exemplos de variações sobre um mesmo tema. ​

Especial é ambientado quase inteiramente em uma sala bagunçada - Netflix

O ceticismo duro sobre a vida digital (que a pandemia só serviu para amplificar) é o tema dominante do programa. Burnham satiriza uma figura parecida com PewDiePie, interpretando um youtuber que narra seus jogos de videogame com pretensiosa seriedade, como podemos ver em uma imagem no canto inferior direito da tela.

Burnham também é o principal personagem do game, que vemos se movimentando mecanicamente por uma sala. Em diversos pontos, o jogador pode escolher se deseja fazer o personagem chorar. Ele sempre responde que sim, e Burnham chora roboticamente, enquanto ao fundo, ouvimos uma versão enlatada da canção sobre estar preso em um quarto.

É uma visão assustadora e distópica de Burnham como instrumento no jogo impiedoso da mídia social. E tanto prenuncia quanto lança dúvida sobre uma cena posterior em que a saúde mental de Burnham parece fragilizada e ele chora a sério.

Os incentivos da web, que recompensam a indignação, o excesso e o sentimentalismo, são os vilões do programa. Em uma homenagem frenética a "Cabaret", Burnham, de óculos escuros, interpreta o mestre de cerimônias na internet, recebendo a todos com cardápio decadente de opções, enquanto luzes de discoteca giram.

É uma canção tipicamente densa, com um trabalho de câmera que se acelera para acompanhar o ritmo. Com igual frequência, o sequenciamento das tomadas de Burnham se contrapõe ao significado de uma música, como quando ele divide a tela em imagens glamorosas, em uma canção sobre conversar com a mãe no FaceTime.

"Inside" é trabalho de um humorista cujas ferramentas artísticas a maioria de seus colegas ignora ou descarta. Não só seu alcance musical se expandiu —o pastiche de estilos que ele emprega inclui bebop, synth pop e canções de musicais— como Burnham, que já publicou um livro de poemas, se tornou tão meticuloso e criativo em seu vocabulário visual quanto na linguagem.

Há trechos de narrativa no programa que são exagerados demais, brincando com clichês sobre artistas melancólicos ou raivosos, mas Burnham antecipou essa e outras críticas, e as integrou ao especial, incluindo a ideia de que chamar a atenção para potenciais falhas serve como correção. "Ter autoconsciência não absolve pessoa alguma de coisa alguma", ele diz.

Verdade, mas ela pode aprofundar e esclarecer a arte. "Inside" é uma obra complicada que, apesar de todas as fronteiras que cruza, continua a ser uma comédia, no fim, e uma comédia que respeita o espírito neurótico e autodepreciativo do stand-up.

Burnham zomba de si mesmo, como um aliado de causas progressistas que gosta de alardear virtudes, como branco com complexo de salvador, como “bully” e egoísta que desenha um diagrama de Venn e se enquadra no cruzamento entre Weird Al e Malcolm X. Que o especial seja um ataque à internet por um artista que surgiu e floresceu nela é a maior das piadas.

Burnham mostra com cuidado o trabalho técnico que realiza por trás das câmeras —iluminação, edição, ensaios. Ele aparece descabelado, cada vez mais hirsuto, com uma barba em estilo Rasputin. A estética telegrafa vulnerabilidade e autenticidade, mas as tomadas finais surpreendentes do especial revelam o truque, encorajando o ceticismo quando ao lado performático desse tipo de realismo.

Perto do fim, ele aparece completamente nu por trás do teclado. É uma imagem que deveria sinalizar um homem disposto a se revelar, até que você percebe que ele está iluminado por um refletor.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.