David Jr. fala da importância de contar histórias pelo olhar do negro: 'Eleva autoestima'
Ator e a mulher, Yasmin Garcez, criam animação com protagonista negro
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Princesas, super-heróis, garotas briguentas ou meninos perdidos. Quem nunca se imaginou como um de seus personagens favoritos? E quantos deles eram negros? Aos 34 anos, o ator David Junior afirma que só agora está vendo uma animação com protagonismo negro feita no Brasil. E para isso, ele mesmo teve que produzi-la.
“Hora do Blec”, disponível no YouTube, mostra as aventuras de um garoto e seus amigos, que cantam e dançam falando sobre assuntos como natureza, animais, família e até a importância de palavrinhas como obrigado, por favor e desculpa. O detalhe é que Blec é negro, com direito a um pente garfo preso em seu black power.
A idealização da animação, no entanto, não é de David, mas de sua mulher, a atriz Yasmin Garcez. Segundo ela, a ideia surgiu há quatro anos, após ver a exposição fotográfica “Projeto Identidade”, que mostrava pessoas negras representando figuras originalmente brancas. “Foi uma exposição que me marcou muito”, afirma ela em conversa por telefone com o F5.
A resposta de Yasmin, que é branca, descendente de imigrantes judeus, foi criar uma animação infantil com protagonismo negro. O projeto acabou não saindo na época, mas foi retomado no ano passado, quando ela já estava namorando com David, que abraçou a ideia, trazendo a ele sua representatividade negra.
“Com o Blec podemos contar histórias a partir do ponto de vista do negro, assim como o negro viu a história ser contada a partir do ponto de vista do branco a vida inteira. Isso muda muito a autoestima. A pessoa quando não é vista, acha que não tem lugar na sociedade. Quem é ela se não está em lugar nenhum?”, afirma David.
Apesar de hoje existir uma equipe por trás de toda a produção de Hora do Blec, o projeto começou apenas como casal. Até as músicas foram compostas totalmente pelos dois. David arriscando na melodia e Yasmin colocando nas letras as mensagens que eles pretendiam passar. “A gente meio que se complementa”, diz o ator.
A escolha pelo público infantil também foi um desafio a parte. O casal, que espera a primeira filha para o próximo mês, afirma que não tinha crianças pequenas por perto quando desenvolveu o projeto, mas desde o início fez questão de focar a primeira infância, que abrange as crianças de zero a seis anos.
“É nessa idade exatamente quando a criança forma a sua autoimagem e a imagem do outro. Então, quanto mais cedo a gente puder trabalhar com elas, é melhor. Para que não cresçam odiando o outro e cercados de um racismo e outras formas de violência social. É o que sentimos vontade de fazer”, afirma Yasmin.
David continua: “A gente já está muito machucado, já temos muitas marcas com esse ‘pré-conceito’ que a gente recebe da sociedade, e a criança não. Elas estão zeradas, não veem maldade, ainda não têm nenhum resquício. Então é fundamental conter todo esse ódio que a gente tem e perpetua.”
Para ajudar no conceito da animação o casal contou, não apenas com a bagagem de David como negro, mas também de uma amiga descendente de orientais, além de usar os 17 ODSs (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) aprovados na ONU e que devem ser implementados até 2030. Entre eles está a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades.
Como resultado, o casal tem recebido mensagem de professores, secretarias de cultura e até pessoas que finalmente se sentem representada. “Receber mensagem de pessoas de 40, 50 anos enche o coração de alegria. Não estamos atingindo só a nova geração, mas dando esperança, visibilidade para gerações anteriores”, diz David.
O PRETO ÚNICO
David Junior, que recentemente deu vida ao neurocirurgião Mauro na série “Sob Pressão” (Globo), já tem um currículo extenso na televisão, mas afirma que a questão de representatividade dos negros não está restrito às animações infantis. Ele diz que cresceu sendo a referência do preto único, o que continua até hoje.
“Desde que eu nasci sinto isso. Minha mãe foi a única da família a se formar em uma faculdade, meu pai foi o único da família a alcançar um cargo público. Eu e meu irmão fomos os únicos da família a estudar em escola particular e lá éramos os únicos negros da sala. Eu fui o único nas peças que fiz. Cresci com essa referência.”
E quem acha que isso acabou, já que hoje ele é ator, famoso, aparecendo em novelas da Globo, está enganado. “Quando eu chego para o teste de um personagem, se tem outros amigos meus, estão competindo comigo. A gente não tem a oportunidade de ser amigos dentro de uma dramaturgia. É ou ele ou eu. Se tiver dois negros é muito.”
Yasmin afirma que tem privilégios por ser branca, mas também encara o racismo que o marido sofrer. “Me causa muita raiva quando uma pessoa fala como se ele estivesse necessariamente em uma profissão que ela julga subserviente”, afirma ela, que enumera essas situações. “Me abalo sim, por amor e por questão de civilidade”.
Mesmo com sua iniciativa e com os recentes protestos contra o racismo, como o Black Lives Matter, o casal se diz cético em relação a uma mudança nesse tipo de preconceito e cita movimentos semelhantes que já surgiram no passado e não conseguiram acabar ou mesmo reduzir significativamente o racismo.
“Eu acho que isso só vai mudar de verdade quando as pessoas reconhecerem seu privilégio e abrirem mão dele. Quando começarem a ver o outro como igual. Mas ainda falta muita estrada para isso acontecer. Enquanto a narrativa estiver do ponto de vista do branco e o negro continuar invisibilizado, a gente não vai sair do lugar.”