Chad, não Chadwick: Família recorda trajetória e criação do astro de 'Pantera Negra'
Cidade natal do ator nos EUA busca forma de homenageá-lo
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Kevin Boseman passou as últimas semanas sentado sob uma imensa nogueira-pecã no quintal da casa onde viveu durante a infância, em Anderson, Carolina do Sul. Ele e o irmão costumavam brincar na balança, e correr um atrás do outro pelo quintal. Entre o estudo da Bíblia e as leituras de verão, aquele era o lugar onde eles adquiriram suas lembranças mais queridas.
Kevin, 48, estava lá para lembrar do irmão, o astro de “Pantera Negra” e outros filmes, que morreu em agosto de câncer de cólon, aos 43 anos.
Para milhões de pessoas, Chadwick Boseman era conhecido como T’Challa, James Brown, Thurgood Marshall e Jackie Robinson. Mas para a família Boseman e seus amigos na cidadezinha de Anderson, ele era só Chad.
“Vim para tentar lembrar de Chad, não de Chadwick”, disse Kevin Boseman. “Porque Chadwick esteve muito presente nas últimas semanas”.
Quando alguém se torna uma celebridade, “você precisa começar a dividir aquela pessoa com o mundo; eu sempre tentei tratá-lo como meu irmão e só isso”. Kevin Boseman faz sucesso por conta própria, como ator, dançarino e roteirista.
Era Chad, e não Chadwick, Boseman que caminhava pelas ruas da cidadezinha, estudou em suas escolas, rezou em uma de suas igrejas. Na comunidade solidária de 20 mil habitantes, ele era uma prova para todos os moradores de que eles são capazes de realizar qualquer coisa. Seu renome uniu a cidade.
“Ele ter nascido lá é uma inspiração: você pode começar em um lugar como aquele e se tornar qualquer coisa que deseje”, disse Derrick Boseman, 54, pastor em Murfreesboro, Tennessee, e o mais velho dos três irmãos Boseman.
Os pais deles, Leroy e Carolyn, têm um total de 25 irmãos e irmãs com raízes em Anderson, cidade em que a família vive há gerações e onde moram centenas de seus membros.
Isso transforma o soul food do domingo em uma grande ocasião familiar, disse Derrick Boseman. E enquanto a fama de seu irmão mais novo crescia, ano após ano, a família cuidou de manter sua doença em segredo.
Chadwick Boseman descobriu em 2016 que tinha câncer de cólon em estágio 3, no momento em que estava à beira de sua maior fama como astro de cinema. É um tipo de câncer que normalmente surge mais tarde na vida, mas a incidência de câncer colorretal é mais alta entre os negros, e o número de casos entre pessoas mais jovens está em alta.
A família Boseman pode se orgulhar de outros talentos artísticos. Leroy, o pai dos três irmãos, é estofador de móveis, costura e desenha. Por sobre a mesa da cozinha na casa dos Boseman, há um quadro mostrando duas mãos unidas em oração, pintado por um tio.
“Chad era talentoso”, disse Derrick Boseman, apontando que desde a infância ele tinha a capacidade de desenhar qualquer pessoa. “Ele provavelmente foi a pessoa mais talentosa que conheci”.
Mas inicialmente, os pais de Kevin Boseman não apoiaram sua decisão de procurar uma carreira artística. “Não era algo que minha família compreendesse”, disse Chadwick Boseman a um entrevistador do The New York Times em 2019.
Quando Kevin se mudou para Nova York, e se tornou um bailarino de sucesso, fazendo turnês com as companhias de Martha Graham e Alvin Ailey e aparecendo na adaptação teatral de “O Rei Leão”, isso abriu as portas. E na hora em que Chadwick decidiu se mudar para a cidade, ele ficou com o irmão em seu apartamento em Prospect Heights, Brooklyn. Foi lá que ele escreveu a peça “Deep Azure”.
Em determinado momento, o pai deles questionou se seu filho mais novo conseguiria sucesso no show business. “Muita gente acha que isso quer dizer virar astro de cinema”, disse Boseman. “Mas eu nunca forcei. Sabia que, se Chad queria mesmo trabalhar com arte, encontraria um caminho e saberia tomar conta de si”.
Quando os filhos eram mais moços, o pai deles lhes disse que sempre procurassem fazer o seu melhor. O conselho calou fundo, especialmente no caso de Chad. “Ele sempre fez o seu melhor”, disse Kevin Boseman. “E o seu melhor era incrível”.
As pessoas que conheceram Chad quando jovem atribuem sua devoção ao teatro e à escrita a uma peça que ele escreveu quando estava no segundo grau, para lidar com a dor da morte de um amigo.
Ele apresentou a peça em diversos lugares de Anderson, mas sua primeira plateia foi a da igreja, contou o pastor de sua família, o reverendo doutor Sam Neely, da Welfare Baptist Church, em um evento em memória de Boseman em Anderson.
“Todos os que assistiram começaram a derramar lágrimas”, disse Neely. “Muita gente me procurou e se disse chocada por um rapaz tão jovem ter tamanho talento, e ser capaz de usá-lo daquele jeito”.
Dirigir e escrever foram os primeiros amores de Chad, segundo seus irmãos, mas na Universidade Howard os professores o aconselharam a atuar, porque isso o ajudaria a dirigir e escrever melhor. E ele trabalhava com mais afinco do que qualquer colega, algo que aprendeu em sua infância como um menino negro criado em Anderson.
“Não basta você ser bom”, disse seu irmão mais velho. “Se você é negro, você precisa ser duas vezes melhor que os outros”.
A mãe deles trabalhava como enfermeira, e acompanhava os alunos da escola local em suas viagens de campo. Ela insistia em que seus meninos se educassem e se mantivessem sempre ocupados. Durante as férias de verão, a cada semana eles retiravam livros na biblioteca.
A fé era uma das âncoras de sua vida. Os meninos estudaram a Bíblia, frequentaram a escola dominical, participaram de um grupo de juventude e cantaram no coral. Neely, pastor na Welfare Baptist desde o começo da década de 1980, percebeu um menino novo na fileira de trás do coral, certa manhã de domingo, que mais tarde se apresentou como Chadwick Aaron Boseman.
Os pais deles eram praticantes entusiásticos da religião, que vibra em sua família há gerações. “E aquela mesma fé foi transmitida aos meninos”, disse o pastor. “Consigo ouvi-la, e quase consigo vê-la”.
O estudo da Bíblia motivou o ator a retribuir a Anderson quando passou a dispor de meios, sua família diz. Ele adquiriu centenas de ingressos para que as crianças necessitadas de Anderson, e sua família e amigos, pudessem ver “Pantera Negra”.
Muitas de suas demais contribuições à cidade jamais foram alardeadas. “Fomos criados assim: quando você pode ajudar, ajude, e não fique se gabando disso” disse Derrick Boseman.
Chadwick Boseman carregou a fé com ele até o último suspiro, disse seu irmão. Quando ele estava doente, a família ligava para orar com o ator. E não importa o que ele estivesse sofrendo, Chad sempre concluía com “aleluia”. “Foi algo que ele nunca deixou de dizer”, disse Derrick Boseman.
Um dia antes de morrer, seu irmão lhe disse: “Cara, estou no quarto período e preciso que você me tire do jogo”. Derrick Boseman perguntou o que ele queria dizer, mas logo compreendeu que Chad estava cansado. Ele estava pronto para partir.
“Quando ele me disse aquilo, mudei minha prece de ‘Deus, cure-o, Deus, salve-o’, para ‘Deus, seja feita a Sua vontade’”, ele disse. “E ele se foi, no dia seguinte”.
As últimas semanas foram um período de lembrança. No parque Disneyland, foi inaugurado um mural que mostra o ator fazendo a saudação de Wakanda a um menino que usa uma máscara de Pantera Negra.
As autoridades de Anderson esperam instalar um tributo de arte permanente. E uma petição está circulando online para a retirada de um monumento confederado instalado em 1902 na praça central da cidade, e sua substituição por uma estátua do filho mais famoso de Anderson. Isso parece improvável, porque remover o monumento atual requereria dois terços dos votos do Legislativo estadual. Os irmãos de Boseman dizem que existem maneiras melhores de lembrá-lo —talvez uma escola que leve seu nome.
As pessoas mais próximas a Boseman ainda estão sofrendo demais. Leroy e Carolyn, os pais de Chad, continuam a ler a Bíblia e a rezar a cada manhã, em Anderson, como sempre ensinaram os filhos a fazer.
Tradução de Paulo Migliacci