Celebridades

Escalada para ser Mulher-Gato, Zoe Kravitz já recusou papel em filme do Batman no passado

Shailene Woodley diz que super-poder da colega é 'o humor e a comédia'

A atriz Zoe Kravitz - Ana Cuba/The New York Times
Alex Pappademas

Zoe Kravitz, 31, aparentemente sempre foi famosa, mas por anos ela não parece ter ocupado um espaço central, interpretando somente papéis coadjuvantes atormentados em épicos como “Mad Max: Estrada da Fúria” e nos filmes da série “Divergente”. Mas isso está a ponto de mudar.

Nesta semama, ela embarca para Londres, para começar a filmar seu maior filme até hoje, interpretando Selina Kyle (mais conhecida como Mulher-Gato), em “The Batman”, do diretor Matt Reeves. Robert Pattinson interpreta o Homem-Morcego, Colin Farrell é o Pinguim e, como convém a uma estrela na adaptação de uma série famosa de quadrinhos para o cinema, Kravitz diz que não pode dizer muito mais, exceto que jamais imaginou que viria a ter papel central em um filme como esse.

“Eu sempre achei que fosse fazer teatro e filmes independentes”, ela disse. “Era disso que eu gostava quando era menina. E achava que era para esse tipo de papel que eu servia. Eu não via muita gente parecida comigo em grandes filmes”.

TRAJETÓRIA

Alguns anos trás, Kravitz –cujos pais, a atriz Lisa Bonet e o músico e influenciador Lenny Kravitz, são ambos negros e judeus– foi desencorajada de fazer um teste para um papel em um dos filmes de Batman dirigidos por Christopher Nolan. Não por Nolan pessoalmente, ela diz. Não era um papel importante como o de Mulher-Gato.

“Não é como se estivéssemos conversando com o pessoal mais de cima, em termos de escalar o elenco”, ela disse. “Mas eles disseram que não queriam um elenco muito ‘urbano’. Eu achei muito engraçado”.

Muita coisa mudou, de lá para cá –para Kravitz pessoalmente e no cinema em geral. Da Valquíria de Tessa Thompson, no universo cinematográfico Marvel, à Ariel de Halle Berry na refilmagem de “A Pequena Sereia” com atores reais, está se tornando mais comum que atores não brancos assumam papéis que não foram concebidos originalmente para eles, especialmente nas adaptações de quadrinhos e em filmes de fantasia, nos quais universos paralelos colidem e qualquer coisa é possível.

Vale a pena apontar que o papel de Mulher-Gato já foi interpretado duas vezes por atrizes não brancas, uma das quais Halle Berry, em uma versão meio infame filmada em 2004.

Mas às vezes o processo de seleção de elenco revela o quanto Hollywood –que parece ter acordado mas continuar meio grogue– tem de avançar em termos de diversidade em suas narrativas. Por duas temporadas, na série “Big Little Lies” da HBO, Kravitz interpretou Bonnie Carlson, a professora de ioga que se casou com o ex-marido bonitão da personagem de Reese Witherspoon.

Em meio a um elenco de atores famosos e dispostos a ir ao limite –trocando agressões verbais e em algumas cenas destruindo literalmente a mobília–, ela é uma ilha de cautelosa reserva, com olhos que sugerem dores profundas.

Mas na primeira temporada, Bonnie parecia flutuar na periferia de uma história que priorizava as tribulações dos personagens brancos e endinheirados. Na segunda temporada, Bonnie enfim tinha uma história a contar –e esta exigia que ela ficasse sentada ao lado do leito de sua mãe, que estava em coma, em um quarto de hospital raramente visitado pelos demais personagens da série. Os críticos e espectadores perceberam, e a série foi severamente criticada por sua aparente falta de interesse pela vida interior de Bonnie.

Kravitz disse que o que a atraiu no papel de Bonnie –que, no romance de Liane Moriarty que inspirou a série, é branca– foi a oportunidade de trabalhar com o diretor Jean-Marc Vallée e com um “elenco dos sonhos”: Witherspoon, Nicole Kidman, Laura Dern e Shailene Woodley; com Woodley, ela trabalhou em três filmes da série “Divergente”, e as duas praticamente cresceram juntas.

Ao ler o roteiro pela primeira vez, Kravitz disse que “me pareceu muito necessário, e ter muito frescor, como se o papel estivesse ocupando um vazio criativo que eu nem sabia ter”.

Ela diz que não se incomodou por a série jamais reconhecer que Bonnie era a única pessoa não branca no ambiente em geral monocromático do norte da Califórnia que serve de cenário a “Big Little Lies”.

“Na primeira temporada, havia algo de realmente refrescante em não fazer disso parte da narrativa”, ela disse. “È frustrante quando pessoas não brancas só podem interpretar um personagem escrito como membro de uma minoria. Por isso é refrescante quando as coisas não são assim. Mas ao mesmo tempo é complicado, porque você não quer ignorar o fato. Parte de nossa responsabilidade, como contadores de histórias, é contar a verdade”

Ela disse que trouxe ideias pessoais para o papel de Bonnie, maneiras que lhe pareciam reais de explorar a posição da personagem no mundo da série. “Propus coisas, e as pessoas não curtiram, o que não é problema”, ela disse. “Não é como se não tivesse coisa alguma a fazer. Acontece muita coisa na vida de Bonnie, além de ela ser parte de uma minoria. Mas os detalhes que propus, a profundidade que eles propiciariam, teriam sido uma delícia”.

Kravitz nasceu em 1988, quando sua mãe era mais conhecida como Denise Huxtable, aluna do Hillman College em “A Differente World”, série derivada de “Cosby Show”, e seu pai era um músico que ainda batalhava pelo sucesso sob o pseudônimo Romeo Blue. Seus pais se separaram em 1995, quando Kravitz tinha quatro anos. No ano seguinte, Bonet e a filha se instalaram em uma área relativamente isolada do Topanga Canyon, em um terreno de dois hectares.

Bonet ganhou fama como a segunda filha do casal Cliff e Claire Huxtable, mas logo perdeu o emprego em “Cosby Show” –teve divergências criativas com Bill Cosby, a primeira das quais girava em torno de ele ter se recusado a incluir a gravidez de Bonet na série, quando ela estava esperando Zoe. Em entrevista, Bonet disse que se mudar para as montanhas foi, pelo menos em parte, “uma retirada de um mundo para o qual eu estava provavelmente despreparada, na idade que tinha então”.

Ela também queria criar uma conexão entre sua filha e a natureza, e alimentar sua imaginação. Ela foi uma mãe que limitou o tempo de sua filha diante da TV em uma época em que isso ainda não era comum. Elas tinham um videocassete e uma coleção de vídeos – em geral coisas da infância de Bonet. “The Little Rascals”. O “Sexta-Feira Muito Louca” original, com Jodie Foster. “Bugsy Malone – Quando as Metralhadoras Cospem”, um musical sobre gângsteres da era da Lei Seca, com um elenco formado por crianças. “Esse era muito importante para mim”, disse Kravitz.

Kravitz sempre quis atuar, disse Bonet. Ela recorda a noite do funeral de sua mãe, quanto Kravitz cantou para os familiares reunidos na casa de Topanga Canyon a canção “The Boy is Mine”, de Brandy and Monica.

“Zoe colocou um terno –e acho que um bigode e óculos– e entrou na sala, enchendo todo mundo de alegria”, disse Bonet. “Ninguém lhe disse o que fazer –era algo puro, vinha de sua imaginação, e a intenção era animar as pessoas que estavam naquela sala”.

Kravitz tinha cerca de nove anos quando isso aconteceu. Aos 11, ela se mudou para Miami para viver com o pai, que havia abandonado há muito tempo o pseudônimo Romeo Blue e se tornado um dos maiores astros do rock da era. Há versões diferentes sobre a mudança de Zoe para Miami, a depender de quem narra a história.

“Houve toda uma sedução”, disse Bonet, “para uma vida diferente daquela que ela levava nas montanhas, com apenas um monitor e um videocassete, e rumo a uma vida de telas em todos os aposentos, cozinheiros privados e uma casa grande. Não houve conversação real, não entre o pai dela e eu. Mas era necessário. Ela tinha de descobrir quem era seu pai, e essa foi a maneira”.

Lenny Kravitz recorda a situação de um jeito um pouco diferente. “Ela queria morar comigo”, ele disse, “e eu a queria comigo. Era hora. E, como família, tomamos a decisão juntos”.

“Isso realmente me ajudou a dar foco à minha vida”, ele disse. “Eu estava correndo o tempo todo, fazendo turnês pelo mundo, cara... precisava mudar de estilo de vida”.

Ainda assim, a vida com Lenny Kravitz vinha acompanhada dos privilégios dos astros do rock. Ele era contratado da mesma gravadora que as Spice Girls, na época, e houve um ano em que Zoe se sentou ao lado delas na entrega do Grammy. “Não me lembro se foi Scary ou Victoria”, disse Lenny Kravitz, “mas ela estava no colo de uma delas, e parecia estar no paraíso”.

Mas, de acordo com Zoe Kravitz, havia motivos mais prosaicos para que a vida ao lado do pai a agradasse. Na casa dele, havia Pop Tarts e TV a cabo. “Eu queria me sentir normal”, ela disse, “e a maneira pela qual minha mãe estava me criando parecia muito anormal, ainda que, agora, recordando, eu veja como ela era bacana”.

Algum tempo depois de se mudar para Miami, Zoe Kravitz disse ao pai que queria ser atriz. “Minha mãe queria que eu esperasse até ser adulta antes de começar a trabalhar”, ela disse, mas seu pai tinha outra opinião.

“Sou uma pessoa que saiu de casa aos 15 anos”, disse Lenny Kravitz. “Eu só podia apoiar minha filha em tudo que ela quisesse fazer, com certeza. E essa foi a decisão dela”.

Todos parecem concordar em que isso teria acontecido de qualquer maneira –mais cedo ou mais tarde, Zoe Kravitz estaria fazendo o que está fazendo até hoje.

“Olha, ela é uma artista genial”, disse Shailene Woodley em entrevista por telefone. “Zoe está sempre olhando o mundo ao seu redor e pensando em como torná-lo melhor do que aquilo que ela encontrou, em como continuar a usar seu talento como atriz e cantora, e roteirista, de modo significativo e benéfico para as futuras gerações, e de ainda assim se divertir ao fazê-lo”.

Woodley estava falando de Londres, onde estava se preparando para um jantar. Ainda que a chegada dos convidados fosse audível, ela continuou a elogiar a amiga, ao telefone.

“Eu acho –não ‘acho’, eu sei– que um dos superpoderes de Zoe é que ela é engraçada demais”, disse Woodley. “As pessoas não fazem ideia de como Zoe Kravitz é engraçada. Eles veem uma mulher ‘cool’, superantenada. Mas seu superpoder é o humor e a comédia, e compreender as complexidades da vida e de alguma forma formatá-las de um modo que enfatiza o drama e o humor. Como criadora, acho que é isso que a motiva”.

'HIGH FIDELITY' E RACISMO NA INDÚSTRIA

Em uma tarde de janeiro, Zoe Kravitz estava sentada em um restaurante de sushi no segundo andar de um shopping center em Los Angeles, mas seus pensamentos estavam loge. Ela pensava sobre o cara que lhe vendia maconha.

Ele chegava carregando o produto dentro de um estojo de guitarra. “E só podia falar em código”, recordou Kravitz. “Você vai querer uma aula de guitarra hoje? Mas, às vezes, ele vacilava e perguntava se eu queria uma guitarra. E eu pensava que aquilo não era mais código”.

Ela tinha pouco mais de 20 anos na época, e trabalhava apenas ocasionalmente –mais uma jovem de Brooklyn com tempo de sobra e uma propensão por pensar demais. Ela não tinha como saber, mas estava pesquisando para seu primeiro papel principal, na série “High Fidelity”, do serviço de streaming Hulu, baseada no romance “Alta Fidelidade” (1995), de Nick Hornby. 

Kravitz interpreta a dona de uma loja de discos em Brooklyn cuja vida –e vida amorosa– não parecem estar funcionando, um papel para o qual todas aquelas aulas de guitarra parecem ter servido como preparação involuntária.

“Fiz muita coisa idiota”, ela disse, usando um termo mais forte do que “idiota”. “Coisas divertidas”,  acrescentou. “Mas ainda assim idiotas. E eu provavelmente era uma pessoa muito difícil para quem se relacionava comigo. Mas acho que todo mundo é assim, com 21, 22, 23 anos”.

Hoje, Kravitz é produtora executiva de “High Fidelity”, além de estrelar a série, e esta parece ser produto de sua sensibilidade –um trabalho divertido, pungente e surpreendentemente pessoal. Kravitz, que fez o segundo grau em Nova York e tem boas lembranças de passar o tempo depois das aulas em lojas de discos encardidas como a Kim’s Video and Music por muito tempo uma instituição no East Village, disse que era fã do livro há muito tempo, e especialmente da versão cinematográfica dirigida por Stephen Frears em 2000, com John Cusack como Rob e Lisa Bonet como a cantora com quem ele tem um romance para se recuperar de uma separação.

“Por algum motivo, ‘High Fidelity’ era um dos poucos trabalhos de arte de que meus pais participaram que eu conseguia ver com distanciamento. É engraçado, porque ver sua mãe beijando John Cusack pode ser desconfortável e estranho, ou sei lá, mas eu sempre amei o filme e gostava de citar seus diálogos”.

Sarah Kucserka, que desenvolveu a série da Hulu com Veronica West, disse que, quando discutiram o elenco, “no topo da lista, mas como alguém que achávamos que nunca conseguiríamos obter, estava Zoe”. Kucserka aponta que “ela tem muita profundidade, e era isso que o personagem precisava. Não dava para abordar esse papel com alguém que só trouxesse uma coisa para a festa”.

Hornby não estava muito ciente de que uma versão televisiva de “High Fidelity” estava sendo preparada. Mas no ano passado, Kravitz perguntou se podia conversar com ele. “Ela parecia muito investida no projeto”, disse Hornby, “e parecia determinada a fazer com que o resultado chegasse o mais perto possível daquilo que desejava”. Ela pediu a benção do autor, e a recebeu.

“Uma das coisas de que mais me orgulho no livro”, disse Hornby, “é que – e percebi isso com mais clareza com o passar dos anos –ele não é só sobre mim. Não é só sobre pessoas como eu. É sobre muito mais gente do que eu imaginava”.

No roteiro original, a personagem principal vivia em Los Angeles e seu trabalho seria em uma estação de rádio. Kravitz propôs transferi-la a Nova York e a uma loja de discos empeirada, em um porão. Ela disse que essas escolhas ajudaram a determinar outros aspectos do programa, como localizar a loja em Crown Heights, uma parte de Brooklyn na qual uma loja de discos empeirada, e sua proprietária, poderiam sobreviver na vida real. 

Kravitz, que se casou em junho do ano passado com o ator Klaus Glusman, morou em Williamsburg por mais de 10 anos, tempo bastante para ver o bairro se aburguesar e ver sua loja de bagels favorita transformada em Apple Store.

O pessoal da loja agora consiste de duas mulheres negras, Kravitz, como Rob, e Da’Vine Joy Randolph, de “Meu Nome é Dolemite”, e de um homem gay e tímido (David Holmes). Quando Rob faz sua lista de cinco maiores decepções amorosas, há mulheres na lista, além de homens.

Nada disso, disse a atriz, representou um esforço para atender a critérios de correção política. Eles só queriam um elenco que parecesse real.

“Eu estava tentando recriar um mundo que conheço”, disse Kravitz, “e esse mundo é assim. Não é um bando de meninas brancas, como na série ‘Girls’”, cujo retrato dos hipsters da região de Nova York lhe pareceu –como a muita gente– demograficamente espúrio.

“Se a série se passasse em Iowa ou algo assim, tudo bem”, ela disse. “Mas se você mora em Brooklyn, há pessoas não brancas em toda parte. Mesma coisa com Woody Allen –como assim, não haver negros nos filmes dele? É impossível. Os negros estão em toda parte. Nós estamos em toda parte. Lamento, mas estamos em toda parte”.

Kravitz reconhece que pode haver resistência à inversão de gênero do protagonista de “High Fidelity”, assim como há resistência a todas as inversões de gênero, da parte de uma certa categoria de consumidores.

“Acho que muitos homens brancos que se identificaram com o livro acham que ele lhes pertence”, disse Kravitz, “e imaginam que vamos ferrar com a história toda, e terão problemas para ver a coisa sob uma luz diferente. Mas acho que se eles conseguirem passar por cima disso, verão que na verdade honramos o livro. Em minha opinião”.

Uma conversa como a nossa é um bom treino. Kravitz está a ponto de embarcar para Londres e rodar um filme no qual interpretará um ícone dos quadrinhos, e ela está ciente de que qualquer apego que os fãs de “High Fidelity” tenham a Rob Gordon como homem empalidece em comparação com o sentimento de propriedade que os nerds contemporâneo abrigam com relação a Batman.

“Desde que eu não permita que isso fique no caminho daquilo que quero fazer para encontrar a personagem e torná-la minha, para que possa ser o mais autêntica possível, respeitarei todos os fãs e todas as opiniões, e o amor deles por esse mundo”, disse, com um sorriso diplomático.
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The New York Times

Com tradução de Paulo Migliacci